miguel_coutofonte: O Globo

Operadora de caixa de um supermercado, X. não suportava mais as dores provocadas por uma colicistite (inflamação da vesícula biliar) que a atormentavam há quase um ano. Depois de percorrer postos e hospitais municipais, a paciente ficou sete meses na fila do Sistema Nacional de Regulação (Sisreg) aguardando uma vaga na internação. Cansada de esperar, ela decidiu recorrer a um esquema para “furar a fila”, que funciona dentro do Hospital Municipal Miguel Couto, no Leblon, unidade de saúde de referência da Zona Sul do Rio. A senha para fazer a cirurgia a jato era a promessa de votar num determinado candidato a vereador.

Menos de 10 dias após o combinado, X. conta que recebeu a ligação de Solange, uma espécie de agenciadora do candidato à reeleição na Câmara dos Vereadores, João Ricardo Ribas Filho (PMDB), que trabalha como cirurgião do Miguel Couto. Atualmente, ele é presidente da Comissão de Saúde da Casa. João Ricardo é especialista em cirurgias de vesícula e hérnia. Chama a atenção o número de cirurgias de hérnia no hospital nos fins de semana. Num único sábado, dia 20 de agosto, quatro operações foram feitas pela mesma equipe que seria ligada a João Ricardo. O próprio vereador disse ao GLOBO que este número não é o normal para um fim de semana, quanto mais um sábado. Ele nega participar do esquema.

MODELO DE SUCUPIRA

O coordenador da Fiscalização da Propaganda Eleitoral, juiz Marcello Rubioli, já instaurou um procedimento para investigar o caso, que também está sendo apurado pelo Ministério Público Eleitoral do estado. Para ele, há evidências de compra de voto.

— É a perpetuação do coronelismo na política brasileira. É a forma “sucupiriana” (expressão tirada da novela Bem-Amado, que abordava o poder político dos coronéis numa cidade fictícia chamada Sucupira) que temos que combater, principalmente quando envolve um hospital público. Já é mais um fato ligando este candidato ao abuso de poder político — disse o juiz, referindo-se ao fato de, na semana passada, a equipe de João Ricardo ter sido flagrada distribuindo óculos aos moradores da Ilha de Paquetá, um dos redutos eleitorais do peemedebista.

Dois pacientes ouvidos pelo GLOBO revelaram como o esquema funciona. Um deles contou que, ao entrar em contato com uma das agenciadoras de João Ricardo, conhecida como Solange, um encontro é marcado com o médico ou alguém de sua equipe, pulando, desta forma, a fila do Sisreg. Em seguida, os exames são analisados numa outra consulta. Em menos de 10 dias a cirurgia é marcada, geralmente nos fins de semana, quando o movimento de cirurgias de rotina do hospital é menor.

X. lembra que ao ligar para Solange, o retorno foi imediato, e ela foi atendida pelo próprio João Ricardo. A operação, no entanto, por ter sido no período eleitoral, foi realizada por outros médicos. O candidato pediu afastamento da unidade a partir de 1º de julho.— Eu me lembro de ter me internado num dia mas, como não tinha vaga, fiquei esperando pela cirurgia dentro do hospital. Quem fez a videolaparoscopia não foi o Dr. João — explicou a operadora de caixa.

Ao ser perguntada se ele pediu o voto diretamente para ela, X. respondeu que não. Como já tinha conhecimento do funcionamento do esquema, ela disse que era tudo dissimulado. Neste mês, quando já estava em casa, ela recebeu a ligação de Solange:

— A secretária dele me ligou e perguntou se estava tudo bem comigo. Aí ela lembrou que ele era candidato. Pediu que eu votasse no Dr. João, que não me esquecesse dele. Estou pensando em votar nele. Não precisaria fazer isso (furar a fila), mas estava há sete meses correndo daqui e dali e não conseguia nada. Tomava remédio e mandavam eu voltar para a casa de novo. Ninguém tomava a iniciativa de me operar. Vinham as dores. Estava com medo de perder o emprego. Foi um desespero. Não precisava chegar nessa época das eleições para eles fazerem o que é obrigação, não é mesmo? — contou X.

Ela lembra que ao ligar para Solange, o retorno foi imediato, e ela foi atendida pelo próprio João Ricardo. A operação, no entanto, por ter sido no período eleitoral, foi realizada por outros médicos. O candidato pediu afastamento da unidade a partir de 1º de julho.

— Eu me lembro de ter me internado num dia mas, como não tinha vaga, fiquei esperando pela cirurgia dentro do hospital. Quem fez a videolaparoscopia não foi o Dr. João — explicou a operadora de caixa.

Ao ser perguntada se ele pediu o voto diretamente para ela, X. respondeu que não. Como já tinha conhecimento do funcionamento do esquema, ela disse que era tudo dissimulado. Neste mês, quando já estava em casa, ela recebeu a ligação de Solange:

— A secretária dele me ligou e perguntou se estava tudo bem comigo. Aí ela lembrou que ele era candidato. Pediu que eu votasse no Dr. João, que não me esquecesse dele. Estou pensando em votar nele. Não precisaria fazer isso (furar a fila), mas estava há sete meses correndo daqui e dali e não conseguia nada. Tomava remédio e mandavam eu voltar para a casa de novo. Ninguém tomava a iniciativa de me operar. Vinham as dores. Estava com medo de perder o emprego. Foi um desespero. Não precisava chegar nessa época das eleições para eles fazerem o que é obrigação, não é mesmo? — contou X.

Ela lembra que, antes de recorrer ao esquema do Miguel Couto, ela procurou saber o preço da cirurgia.

— Não tinha como pagar R$ 7 mil pela operação. Eu ainda estou pelo INSS — lembrou ela.

O aposentado Y., também conseguiu antecipar a operação de hérnia inguinal, depois de ficar dois meses aguardando na fila.

— Eu procurei o Dr. João Ricardo. Cheguei nele por conhecimento. Fiquei sabendo que ele é vereador. Eu estava com muita dor. Depois da operação, na semana passada, alguém do gabinete do Dr. João me ligou me perguntando se eu tinha alguma coisa para outubro. Eu entendi que era para votar nele, pois falaram no nome dele. Não tive contato com ele — disse o aposentado, que não está certo ainda se irá votar nele.

Os redutos eleitorais de João Ricardo são as favelas da Rocinha, Vidigal e Parque da Cidade, na Gávea; Morro do Banco, no Itanhangá; e comunidades de Campo Grande. Procurado pelo Globo, o vereador negou que participe de esquema com colegas no Hospital Municipal Miguel Couto, onde trabalha como médico estatutário da Secretaria Municipal de Saúde desde 2001.

— Não é assim que funciona: eu vou te operar e você vota em mim. Fazer quatro cirurgias de hérnia num único dia é absurdo. Não é comum. Dois no máximo, num plantão. Este tipo de cirurgia não é de emergência Eu não tenho o poder de escolher pacientes — justificou João.

Ele disse estar sendo vítima de intrigas de adversários políticos:

— Na semana passada, disseram que eu estava distribuindo óculos em Paquetá. Quem seria louco de fazer tal tipo de coisa numa praça pública. Isso é bastante previsível. É coisa de inimigo político. Estou muito triste com isso — afirmou o médico.

O vereador disse que não tem nenhuma mulher chamada Solange trabalhando com ele, embora haja voluntários na sua campanha “por ter prestado muitos serviços como vereador”.

O vereador chegou a ser denunciado pelo Ministério Público Federal por participação em um suposto esquema de desvio de órgãos humanos e de fraude na fila de transplantes de fígados no Rio, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, em 2008, junto com mais quatro médicos. A operação da Polícia Federal, na época, ficou conhecida pelo nome de “Fura Fila”. Em seguida, o médico fez uma transação penal com o MPF pagando uma multa de R$ 10 mil, destinada à instituição de crianças com problemas cardíacos.

A Secretaria de Saúde do Município disse que não recebeu nenhuma denúncia referente a João Ricardo, assim como contra os outros médicos que atuariam no esquema com o vereador dentro do Hospital Municipal Miguel Couto. Por meio de nota, a assessoria de imprensa do órgão informou que vai abrir procedimento interno para apurar o caso e, se surgirem indícios de irregularidades na unidade, todas as medidas cabíveis serão tomadas para punição dos envolvidos. A nota informa ainda que a secretaria “repudia qualquer uso irregular dos serviços de saúde”.

REDUÇÃO DE FILAS

A assessoria disse que João Ricardo cumpre carga horária regularmente no Miguel Couto, sem ter qualquer cargo de chefia e que, no dia 1º de julho, ele parou de trabalhar na unidade, como determina a lei eleitoral.

Sobre as cirurgias nos fins de semana, a secretaria esclareceu que elas vêm sendo feitas para “redução da fila cirúrgica na cidade e otimização dos recursos humanos e instalações das unidades”. Os hospitais da rede municipal de saúde realizam em média 3.911 cirurgias por mês. O Hospital Municipal Miguel Couto faz, em média, 20 cirurgias por dia, entre emergências e eletivas (rotina). A assessoria não informou o número de cirurgias de hérnia feitas nos fins de semana, porque o setor já estaria fechado.

Um dos médicos que aparece nas fichas dos que operam as pessoas que furam a fila, o cirurgião Enrique Bolano é servidor estatutário e faz parte da equipe do serviço de cirurgia do Hospital Miguel Couto desde junho de 2012. Ele trabalha na unidade na rotina cirúrgica de segunda a sexta-feira e faz mais 12 horas aos sábados. Ele foi procurado pelo GLOBO, mas não foi encontrado.