2014-732883154-2014071134916.jpg_20140711fonte: O Globo

Na sala de cirurgia, o paciente aguarda. Próximo dele, uma impressora que, em vez de tinta, contém células. E vai construindo, pouco a pouco, uma parte idêntica a de seu corpo. Um coração, um fígado, um braço repleto de vasos sanguíneos pronto para substituir o que foi danificado. A cena está na ficção, mas não é considerada impossível. Pelo contrário. Esse é o objetivo de diferentes grupos de pesquisadores no mundo, que já até conseguiram criar tecidos humanos, sendo que, por enquanto, apenas em laboratório. Na prática, o uso de protótipos feitos a partir da técnica já mudou a vida de vários indivíduos, inclusive brasileiros.

A impressão em 3D pode produzir de tudo, desde pequenos objetos até alimentos. Aviões, armas e até aquela bolsa idêntica à de marca estão na lista de possibilidades vislumbradas e, por isso, já levantam calorosos debates éticos. Na medicina, cientistas a têm como uma iminente revolução. Nas últimas duas décadas, saiu de um pequeno nicho para um mercado bastante lucrativo, que pode chegar a um impacto econômico, em 2015, de US$ 550 bilhões, segundo o Instituto Global McKinsey. No Brasil, tanto a discussão quanto o desenvolvimento da técnica estão mais tímidos. Mas os avanços estão acontecendo, puxados, por exemplo, pelo cirurgião Terence Farias, do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Ele foi o único brasileiro convidado a participar recentemente do 1º Congresso Anual Mundial de Impressão 3D. Isso por conta de uma publicação no “International Journal of Clinical Medicine”, que teve o recorde de 33 mil acessos no site.

– Foi uma surpresa para mim. Através do artigo, fui convidado a participar do congresso – conta o cirurgião, que se impressionou com o evento. – Na China tudo é gigante, foi o maior congresso que fui. Falava não só da aplicação da impressão 3D na medicina, mas na área aeroespacial, robótica, em quase tudo. Isso só mostra que peso que o tema está ganhando é enorme. O futuro é realmente a prototipagem, seja no objetivo que for. O que se imaginar poderá, através do computador, ser fabricado.

MANDÍBULA IMPRESSA EM TITÂNIO

Na China, Terence apresentou um trabalho que já vem tendo resultado prático: o uso de protótipos para a reconstrução de mandíbula em pacientes com câncer de cabeça e pescoço. Ele explica que, para eliminar o câncer nessa área do corpo, a cirurgia deixa deformações no rosto. Por isso, duas equipes participam da operação: uma para retirar o tumor e outra para reconstruir a área mutilada. O processo é difícil e dura cerca de dez horas. Geralmente, os cirurgiões tiram parte do osso da bacia ou da perna do paciente para poder reconstruir sua mandíbula. E esse pedaço é sempre maior do que o necessário. Não raro, portanto, a área que perde osso acaba ganhando marcas, como afundamentos ou cicatrizes.

O projeto do brasileiro usou a impressora 3D para tornar a cirurgia menos complicada. São dois processos possíveis. No primeiro, a tomografia computadorizada deu os detalhes da anatomia do paciente. Através de um software, ele transferiu essa informação para a impressora 3D, que criou, em tamanho real, em acrílico ou gesso, a bacia e a perna do paciente que iria ser operado. Antes da cirurgia, portanto, os cirurgiões conseguiram calcular a necessidade de osso para a reconstrução, evitando perdas. Além disso, testaram e aprontaram parafusos e placas que seriam usados. Locais de cortes também foram previamente escolhidos. O resultado: redução média de 84 minutos na cirurgia, 10% do custo e menos drogas e material cirúrgico.

Outra alternativa, ainda mais perto do que se espera da impressão 3D, foi imprimir o protótipo de titânio e molibdênio (um mineral) da própria mandíbula do paciente, já com suas articulações. Depois, foi implantada. É um passo adiante, mas essa opção ainda tem riscos. A radioterapia pode esquentar o metal, além do protótipo poder ser rejeitado. A escolha acaba sendo do paciente. Ao todo, Terence já realizou 45 cirurgias com ambas as técnicas desde 2012. Todos se recuperaram sem problemas, segundo ele.

Técnica semelhante foi usada na China. Protótipos de titânio foram empregados no lugar de ossos em pacientes com câncer na medula óssea. Clavícula, escápula e parte de ilíaco sintéticos foram aplicados nos indivíduos, que se recuperaram bem, segundo pesquisadores do Hospital Xijing, na Quarta Universidade Médica Militar.

A FRONTEIRA DAS CÉLULAS-TRONCO

O futuro, no entanto, não é o titânio, e sim, as células. Cientistas já estão usando máquinas para imprimir pequenas tiras de tecido em laboratório. E embora a impressão de órgãos humanos esteja a anos de distância, a tecnologia está se desenvolvendo rapidamente e poderia resolver um problema mundial: a fila de espera de transplantes. Só no ano passado, 38.759 brasileiros aguardavam por uma cirurgia.

A Universidade de Louisville, nos EUA, deu mais um passo nessa direção. Eles usaram a técnica para criar partes do músculo do coração, a partir de células de gordura e colágeno. Até agora, conseguiram modelar válvulas e pequenas veias.

Um dos principais grupos nesse meio é a Organovo, uma empresa da Califórnia que, em janeiro, apresentou o primeiro tecido de fígado para ser usado em experiências de novas drogas. O modelo é quase idêntico às amostras de tecido de um fígado humano e foi construído a partir de células vivas.

Também nos Estados Unidos, outra pesquisa de ponta é da TeVido BioDevices, fundada pelo diretor de Engenharia Biomédica da Universidade do Texas, Thomas Boland, que há mais de uma década começou a usar impressoras de computadores para a produção de tecidos orgânicos. O atual foco deles é imprimir implantes de mama para pacientes com câncer.