fonte: Folha de SP

por Claudia Collucci

É praticamente certo, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), que o vírus da zika tenha relação com os casos de microcefalia, mas nem de longe ainda é possível afirmar que ele esteja causando uma “epidemia” de más-formações congênitas, como já alardearam alguns.

Sabem por que? Porque o país não faz ideia de quantos casos de microcefalia registrava de fato até 2014. Conforme revelou a Folha nesta segunda (15),estudos brasileiros publicados pela OMS estimam que, antes da “era zika”, haviam 6.000 casos de microcefalia por ano. Mas o Ministério da Saúde só computou 150.

Vejam o que dizem alguns geneticistas mais respeitados do país sobre o assunto:

João Monteiro de Pina Neto, professor da USP de Ribeirão Preto: “Temos uma subnotificação muito grande. Até uns tempos atrás, nos berçários só era registrado o peso do recém-nascido. Agora, com as cartilhas, são registradas as quatro medidas essenciais, mas o registro de defeitos congênitos é muito pobre e incompleto, levando a um grande subregistro de anomalias congênitas”.

Ana Beatriz Pérez e Mirlene Cernach, professoras na Unifesp: “Existe um subregistro das anomalias congênitas, entre elas a microcefalia. A frequência mundial de anomalias congênitas em recém nascidos é por volta de 3%. Na maioria das cidades brasileiras não ultrapassa 1%.

A subnotificação ocorre por vários motivos: falta de preparo dos profissionais responsáveis, falta de orientação adequada, a não obrigatoriedade do registro, dificuldade no diagnóstico, entre outros”.

Décio Brunoni, professor na Universidade Mackenzie: “A subnotificação de anomalias congênitas na declaração de nascidos vivos ocorre em praticamente todos os Estados. O que estamos enfrentando agora com a seria mais fácil de entender se as notificações das anomalias congênitas fossem realizadas adequadamente”.

Salmo Raskin, professor na PUC-PR: “A epidemia de zika fez saltar aos olhos uma histórica epidemia oculta de anomalias congênitas no Brasil, tornando evidente e vergonhoso o total descaso histórico das autoridades brasileiras no que se refere aos cuidados com quem tem esses problemas, que há 20 anos é a segunda maior causa de mortalidade infantil no Brasil.”

Mesmo que apareça um novo elemento nessa história (os céticos continuam chamando atenção para a falta de estudos mostrando a relação de causa e efeito do vírus com a microcefalia), o zika já cumpriu um papel importante: desnudar a total desatenção do país em relação às anomalias congênitas.

O Sinasc (sistema de informações sobre nascidos vivos) está implantado desde 1990 e até hoje não consegue fazer com que Estados e municípios preencham corretamente os dados sobre defeitos congênitos.

Há 12 anos, repousa nas gavetas do Ministério da Saúde uma política nacional cujo eixo principal são as anomalia congênitas. Se de fato estivesse implantada, talvez teríamos pelo menos uma estrutura já preparada para receber essas crianças com microcefalia, com consultas, exames e terapias.

No mês passado, a dona de casa Maria Vitória Ataídes ainda lutava por tratamento adequado no SUS para o filho, Luiz Guilherme, de 4 meses, que foi diagnosticado com microcefalia. O caso do garoto foi o primeiro a ser investigado em Goiás por suspeita de ligação com a zika.

Ela precisava se deslocar de Rio Verde, no sudoeste goiano, para a capital em busca de neuropediatra (porque na sua cidade não tinha nenhum) e pagava R$ 400 por uma consulta particular. O dinheiro vinha de rifas e de campanhas nas redes sociais que a família fazia para custear as despesas. A Secretaria da Saúde prometeu que o caso teria prioridade.

Sim, os bebês com microcefalia merecem prioridade. No último boletim, o Ministério da Saúde informou que são 462 casos confirmados de microcefalia/alterações do sistema nervoso central associados a causas infecciosas (41 ligados ao zika) outros 765 casos foram descartados porque os exames deram normais ou porque a microcefalia e outras alterações do sistema nervoso eram de causas não infecciosas.

A pergunta que não quer se calar: a microcefalia e outras más-formações não associadas ao zika vão receber a mesma atenção, a mesma prioridade, ou as mães desses bebês vão ter que começar a inventar sintomas para conseguir alguma atenção?