A CIPERJ repudia a declaração do Ministro da Saúde, Sr. Ricardo Barros, que no último dia 13 de março afirmou em discurso público na câmara municipal da cidade de Curitiba que os médicos brasileiros não apresentam disposição para o trabalho, e isto é a causa das deficiências no funcionamento do SUS. Este discurso, mais do que indevido, é ofensivo aos profissionais, que merecem respeito. Médicos ou não, ofender indiscriminadamente trabalhadores e cidadãos não é um direito de gestores públicos.

Considerando as atitudes recentes do Ministério da Saúde quanto à gestão de horários de trabalho nos hospitais públicos federais do Rio de Janeiro, a CIPERJ vem prestar algumas informações a respeito da atividade profissional dos Cirurgiões Pediátricos, a fim de esclarecer a opinião pública.

  1. O avanço técnico da medicina levou ao desenvolvimento de várias áreas de atuação e especialização no exercício da profissão. Estas várias áreas de atuação têm prerrogativas específicas que, evidentemente, exigem uma regulação adaptada a suas especificidades. Desta forma, é impraticável pensar que a regulação da atividade de um médico dermatologista pode ser feita exatamente da mesma forma que a de um patologista ou cirurgião de trauma. Há áreas de atuação que primam pelo atendimento ambulatorial, áreas que atuam em visitas domiciliares, áreas que exigem atuação intensiva em momentos específicos e até áreas que permitem serviço à distância ou em escritórios. Há áreas que primam pelo atendimento frequente de urgência e emergências e aquelas que raramente precisam atuar desta forma. A distribuição de horários de trabalho precisa respeitar as especificidades da atuação dos profissionais, inclusive para permitir que estes sejam mais produtivos e resolutivos. Médicos modernos não “dão plantão” ou “fazem ambulatório”: têm uma enorme multiplicidade de funções e logísticas de atuação.
  2. A previsibilidade de horários de atuação necessita de flexibilidade para muitas áreas de especialização. Desta forma cirurgiões podem não ser capazes de encerrar cirurgias, mesmo eletivas, dentro de uma margem de tempo exata.
  3. A atuação de cirurgiões prevê a dedicação exclusiva sob um nível altíssimo de stress e atenção absoluta, durante o tempo que for necessário (eventualmente 6 ou mais horas seguidas), sem comer ou beber, sem se afastar até para ir ao banheiro, muitas vezes se responsabilizando por decisões minuto a minuto que vão determinar a sobrevida, a presença ou não de sequelas e o grau de sofrimento do paciente até mesmo num futuro longínquo. No caso dos cirurgiões pediátricos, isso significa estar responsável pela vida de uma criança, que tem 80 anos pela frente. Que tem pais, avós, irmãos, que choram ansiosos e assustados ao entregar seu bebê ao cirurgião na porta do centro cirúrgico (creiam, isso nos emociona e gera ansiedade). No caso dos cirurgiões pediátricos operar significa muitas vezes várias horas de pé, eventualmente em posições desconfortáveis e usando lentes de aumento pesadas, que exigem ainda mais concentração e esforço. Não se pode exigir deste profissional que termine este procedimento e inicie imediatamente outro porque seu horário formal de trabalho ainda não terminou. O profissional precisa de recuperação física e mental a partir deste esforço, e o preço de não fazê-lo é cobrado sobre o próximo doente a ser atendido. Não sois máquinas, homens é que sois. Não nos parece que este tipo de trabalho possa ser estritamente regulado por ponto eletrônico.
  4. A atuação dos cirurgiões pediátricos é extremamente multifacetada. Atuamos em ambulatório, centro cirúrgico, atendimento obstétrico (quando em presença de gestações de fetos portadores de malformações), emergências e em quaisquer setores hospitalares atendendo crianças e adolescentes. Desta forma, é necessário o reconhecimento de que a distribuição de cirurgiões pediátricos nos hospitais não é setorial, se faz conforme a demanda de serviços, embora alguns focos de atuação (mormente ambulatórios) sejam mais previsíveis.
  5. Os cirurgiões pediátricos são profissionais incomuns. Somos cerca de 150 em todo o estado do Rio de Janeiro. Que tem uma população de crianças e adolescentes de mais de 1200000. Não trabalhamos pouco, senhor ministro. Trabalhamos demais. E no atual estado da arte, consideramos o treinamento praticamente inexistente de outros profissionais para procedimentos cirúrgicos em pacientes pediátricos, somos muito necessários. O que quer dizer, em última instância, que em muitas instâncias em que existe déficit operacional na área de cirurgia pediátrica, isto não se deve à nossa pouca disposição para o trabalho, mas sim a um enorme excesso de demanda. Na verdade, o “aprisionamento” em horários rígidos pode, potencialmente, DIMINUIR o espaço de atuação profissional, pela inflexibilidade e impossibilidade de mecanismos adaptativos e compensatórios, responsivos a circunstâncias e prioridades.
  6. A atuação em regime de sobreaviso alcançável é um regime de trabalho reconhecido legalmente e com regulamentação específica, extremamente útil como instrumento de gestão em áreas de atuação médica que primam pela ocorrência incomum de emergências, permitindo o aumento de eficiência e segurança, especialmente para gerir um quantitativo limitado de profissionais que atuam proporcionalmente pouco em emergências de demanda imediata. Também, evidentemente, a exigência de que o profissional em horário de atendimento em regime de sobreaviso esteja disponível para atendimento assim que este se fizer necessário configura trabalho, e deve ser considerado assim, em termos de carga horária cumprida e pagamento de salários. Gostaríamos de enfatizar aqui que consultoria por colegas através de contato telefônico ou por meios eletrônicos, inclusive com envio de dados de exames de pacientes para parecer é trabalho médico. Há inúmeros estudos normatizando e definindo os limites e virtudes deste tipo de atuação.
  7. A atuação do cirurgião depende ao extremo de condições e pessoas que independem de sua gestão. Não podemos operar sem insumos (material consumível e material técnico essencial, tais como instrumental cirúrgico e microscópios), condições ambientais (iluminação, macas especiais, focos luminosos) e profissionais essenciais (enfermeiros, anestesistas, patologistas, radiologistas e pessoal de limpeza, fundamentalmente). Mesmo estando presentes não há como exercer a função final a que nos propomos sem condições que o permitam. Daqui deriva um outro problema: a atividade de atendimento ambulatorial do cirurgião pediátrico não é resolutiva por si só com relação àquelas doenças que exigem tratamento cirúrgico. Não é produtivo aumentar a carga horária ambulatorial sem que se possibilite que as crianças diagnosticadas possam ser efetivamente operadas.
  8. A atuação de médicos necessita de autonomia e autoridade. Não é possível responsabilidade sem autoridade. Não é razoável que um profissional com treinamento específico seja manietado por mecanismos administrativos ao ponto de não poder exercer sua atividade com autonomia, ao ponto de não estar autorizado a definir que um paciente necessita de um procedimento com maior urgência do que outro. Com transparência e honestidade, é claro, mas estes são pressupostos do profissional honesto, a grande maioria de nós. O preço da liberdade e da autonomia é a responsabilidade. Pelas quais pagamos um preço alto, exercendo uma profissão altamente regulamentada e suscetível a processos judiciais frequentes. O preço da responsabilidade enorme que carregamos implica por si só em autonomia decisória e autoridade. Não há qualquer possibilidade de atuação médica sem estas condições. Isto não é arrogância ou indisciplina. É o sine qua non da profissão.
  9. Médicos precisam imperativamente estudar e ensinar. E não nos referimos apenas a estudar para crescer em termos de conhecimento profissional. Nos referimos à necessidade de estudar casos complexos e planejar condutas específicas. A revisão plena de todos os exames de imagem de um caso oncológico, por exemplo, pode demandar mais de uma hora de dedicação. Neste momento o cirurgião não estará no ambulatório ou centro cirúrgico. Não estará com um bisturi na mão nem atendendo um doente de forma direta, mas estará possibilitando que um doente seja (bem) atendido. Da mesma forma um cirurgião que está sentado revisando a anatomia de uma região corporal ou planejando um problema cirúrgico ou aprendendo uma nova técnica está… trabalhando. Também a necessidade de ensinar os mais jovens é essencial para a sociedade: se os cirurgiões mais velhos ou mais especializados ou mais treinados em algum campo específico de atuação não ensinarem os mais jovens sua expertise se perderá em seu tempo de vida ativa. O médico que ensina está prestando um serviço. O médico que está conversando a respeito de aspectos técnicos de uma cirurgia ou de normas éticas para um atendimento ou a respeito da postura profissional frente a outros profissionais com seu residente está… trabalhando.

Portanto, Sr. Ministro, é hora de reconhecer que as coisas são mais complexas e sofisticadas do que parecem. Está na hora de ver que há mais formas de trabalhar do que se reconhece de forma óbvia. Que nem sempre um cirurgião que não está operando ou atendendo no ambulatório está à toa. Está na hora de ver que respeito é bom e a gente gosta, em bom idioma carioca.