fonte: O Globo

A crise que ronda os hospitais da prefeitura chegou também às 117 clínicas da família. Concebidas dentro de uma estratégia de investir na prevenção das doenças, as unidades que atendem mais de dois milhões de pessoas enfrentam o risco de um colapso por falta de medicamentos, material para exames, entre outros insumos. Algumas também já reduziram o horário de funcionamento para cortar custos.

Além disso, devido a atrasos nos salários, médicos e outros profissionais de saúde, que são contratados por organizações sociais, iniciaram uma greve há duas semanas. Em média, apenas 30% dos funcionários estão trabalhando – percentual informado pelos grevistas e confirmado pela própria prefeitura, o que limita o número de consultas.

A falta de recursos é explicada pelo fato de a Secretaria municipal de Fazenda manter bloqueados, desde o início do ano, R$ 550 milhões do orçamento da Saúde por conta da crise financeira do município.

Nesta segunda-feira pela manhã, funcionários das OSs fizeram manifestações quase simultâneas em 33 pontos da cidade para denunciar a situação. Além da falta de pagamentos, em algumas unidades, a rotina de funcionamento já foi alterada para reduzir gastos. Na Rocinha, por exemplo, a Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza deixou de abrir aos sábados.

Além disso, nos dias úteis, o horário de fechamento foi antecipado das 20h para as 18h. Os estoques de anticoncepcionais injetáveis e de remédios para hipertensão e o controle de diabetes estão zerados. A denúncia é da |Associação de Médicos de Famílias e Comunidades do Estado do Rio de Janeiro.

– A Rocinha tem pelo menos 2,5 mil pacientes diabéticos que dependem da medicação. E esse é apenas um exemplo. A nossa reivindicação não é para que sejam colocados os salários em dia. As unidades correm o risco de parar por falta de material. E esse é um problema que não se limita às clínicas da família. Atinge todas as unidades de saúde, inclusive hospitais – disse Moisés Vieira Nunes, presidente da entidade.

Moisés Nunes apresentou outros dados que refletem o caos no setor. Segundo ele, medicamentos para a pressão alta são uma raridade na rede. Em quase todas as unidades, falta até papel para imprimir receitas. Nas clínicas das famílias de Guaratiba e Campo Grande, os profissionais só receberam o equivalente a 46% dos salários de outubro.

A entidade teve ainda acesso a um relatório emitido pelo almoxarifado da Secretaria municipal de Saúde que lista dezenas de medicamentos, cujos estoques estão zerados ou perto do fim. Na relação, há de antibióticos a antitérmicos.

O presidente da associação disse que outro documento mostra que, na maioria das unidades da Zona Norte, até exames de sangue rotineiros foram suspensos porque, na semana passada, venceu o contrato da prefeitura com o laboratório particular que fazia o processamento das análises. O problema atinge as clínicas da família que atendem moradores de Acari, Complexo do Alemão, Vigário Geral, Manguinhos, Ilha do Governador, entre outros bairros.

– Onde eu trabalho, ainda há alguns remédios disponíveis no estoque. Mas quem procura atendimento das 17h às 20h sai de mãos vazias. Nas últimas três horas de expediente, a farmácia fica fechada porque falta pessoal – contou um médico que trabalha numa clínica da família em Guaratiba e pediu para não ser identificado.

O vereador Paulo Pinheiro (PSOL), integrante da Comissão de Saúde da Câmara do Rio, disse que obteve informações junto ao Tribunal de Contas do Município (TCM) de que, até setembro, a prefeitura tinha uma dívida de R$ 459 milhões com as nove organizações sociais responsáveis por administrar 171 unidades de saúde.

Nesta lista, estão incluídas não apenas as clínicas da família como também 14 UPAs, três coordenadorias de hospitais de emergência, entre outras unidades de diversas especialidades. Segundo Pinheiro, deste total, R$ 90 milhões ainda são para quitar despesas do ano passado.

Paulo Pinheiro acrescentou que, desde outubro, a falta de insumos já provocou o fechamento de leitos e serviços em diversas unidades. No caso do Hospital Albert Schweitezer, em Realengo, foram cortadas 15 vagas no CTI. No Hospital Pedro II, em Santa Cruz, 20 leitos de clínica médica e cirúrgicos também deixaram de estar disponíveis.

Na Ilha do Governador, foram fechados oito leitos do Hospital Evandro Freire. No Méier, o Hospital Salgado Filho perdeu oito vagas. Em Acari, o Hospital Ronaldo Gazolla deixou de oferecer 60 leitos e suspendeu cirurgias.

– A crise é provocada pela falta de recursos. E não será resolvida apenas com a colocação dos salários em dia se os profissionais não tiverem insumos para trabalhar. A falta de materiais e de medicamentos não se limita às OS. E a situação para 2018 não parece muito animadora. Ao todo, o orçamento previsto para 33 hospitais será menor do que o proposto para este ano. Além disso, o atraso nos repasses aos fornecedores fará com que parte das despesas previstas, na verdade, seja para arcar com compromissos de 2017 – disse o vereador.

Os maiores cortes previstos no orçamento de 2018 em unidades de emergência são para o próprio Pedro II (R$ 24 milhões a menos) e Miguel Couto (perda de R$ 20 milhões). Entre os hospitais gerais, a tesoura atingirá de maneira mais dura o Hospital Ronaldo Gazolla, em Acari (corte de R$ 24 milhões).

Essa redução de recursos ocorrerá, apesar de a prefeitura ter anunciado em outubro que reforçaria em R$ 500 milhões o orçamento inicialmente previsto para a Saúde em 2018. Hoje, o secretário municipal de Saúde, Marco Antonio de Mattos, participará de uma audiência pública na Câmara dos Vereadores, para explicar os cortes.

Em nota, a Secretaria de Fazenda informou que já liberou R$ 220 milhões em recursos remanejados de outras pastas para a Secretaria municipal de Saúde. Mas não revelou se há previsão para descongelar os R$ 550 milhões. O órgão informou ainda que, na última sexta-feira, autorizou a liberação de R$ 60 milhões para colocar em dia os salários dos funcionários das OSs, mas não informou a data em que os recursos serão, de fato, depositados já que isso depende da conclusão de processos burocráticos.

“Os repasses feitos às organizações sociais obedecem a um calendário estipulado e publicado em Diário Oficial pela Secretaria municipal de Fazenda. Não haverá fechamento de unidade de saúde”, informou a nota da secretaria.

A Secretaria municipal de Saúde confirmou, no entanto, que há problemas no estoque de medicamentos e insumos básicos. Segundo o órgão, as compras estão sendo feitas com o uso de um crédito de R$ 25,7 milhões liberado no dia 23 de outubro. Em relação aos serviços laboratoriais na Zona Norte, o órgão afirmou que fez uma concorrência para escolher um novo fornecedor já que o contrato anterior venceu.

No entanto, o processo de escolha não terminou devido a problemas com a documentação da empresa vencedora. Por isso, a prefeitura contratará os serviços de um laboratório por emergência (sem licitação). O processo deve ser concluído ainda esta semana.

Na nota, a secretaria atribuiu parte dos problemas enfrentados a pendências deixadas pelo governo anterior. “Somente na Saúde, a dívida deixada era de R$ 266 milhões, com fornecedores e também com organizações sociais. A prefeitura precisou fazer esforços para ajustar o orçamento a essa realidade.