fonte: Folha de SP

por Claudia Collucci, repórter especializada na área da saúde

“Qual o diagnóstico da menina?”, perguntei à médica residente em medicina de família logo após nos despedirmos de uma adolescente com transtorno mental, que se manifesta em surtos psicóticos, mas que nunca passou por um serviço psiquiátrico. “Diagnóstico de vida de merda”, respondeu ela, séria.

Pouco antes, a mãe da menina havia agradecido à médica pelo antipsicótico que ela havia prescrito. “Graças a Deus, ela está mais calma, dormindo melhor, e me deixa dormir, doutora. Fazia três meses que eu não pregava o olho.” Alguns metros à frente, a médica desabafa: “É o que nos resta, dopar.”

Naquela tarde e nos dias que se seguiram, foram vários os diagnósticos dessa natureza. Alguns literais, como o menino que tinha verme nas fezes. A médica passou um vermífugo, mas, o que fazer com o esgoto a céu aberto escorrendo ao lado do barraco?

Na casa de dois cômodos, encontramos uma idosa deprimida, com profundas olheiras. O filho, de 44 anos, é alcoólatra, usuário de crack e, nos momentos de surto, agride a mãe. Ela pede à médica a renovação da receita do antidepressivo.

No barraco no topo de um morro, um senhor de 63 anos está cego por conta do diabetes sem controle. Mora sozinho numa casa que desabou parcialmente desde a última forte chuva. Metade dela está sem telhado. A única companhia é um rádio mal sintonizado. O médico mede a glicemia. Está três vezes acima do recomendado. Na geladeira, só tem leite e refresco artificial.

Na descida do morro, um adolescente a serviço dos traficantes da área nos acompanha e avisa a chefia. Na escadaria, um deles esbarra de forma proposital no médico em atitude provocadora. “Nós somos lá do posto”, diz o doutor. “Eu sei. Só tô passando”, responde o jovem.

A formação médica, salvo raras exceções, como a medicina de família, está afastada dessa realidade de pobreza e de violência que afeta a maioria dos brasileiros. E não dá para pensar em cuidado em saúde sem levar em conta os determinantes sociais que sequer aparecem nas grades curriculares de muitas escolas.

O aprendizado de medicina é feito, em geral, em ambiente protegido. Alguns, até demais. Certa vez ouvi de um entrevistado que uma faculdade privada de medicina, com mensalidades de R$ 8.000, tinha montado um cenário de pobreza, com barracos e tudo, e contratado atores para desempenharem o papel dos miseráveis. Isso para “preparar” os alunos quando tivessem que enfrentar a vida real. Se é que um dia vão conhecê-la…

Voltei a me lembrar dessa história ao ler a monografia “Formação médica em território violento”, escrita pelas médicas de famílias e comunidade Ana Carolina Xavier e Juliana Machado como trabalho de conclusão do programa de residência em medicina de família e comunidade da Secretaria da Saúde do Rio de Janeiro.

Elas atuaram na comunidade do Jacarezinho, no Rio. Dizem que tiveram muita dificuldade para encontrar trabalhos científicos que abordassem a violência armada como determinante social que agrava o adoecimento das pessoas. Um trecho da monografia nos aproxima um pouco desse dia a dia:

“Cada dia de tiroteio era uma reviravolta no estado emocional. Ser médico de família e comunidade por si só já é um desafio emocional diário quando encaramos a miséria da sociedade. Atuar nessa especialidade, lidando com tiroteio ou iminência de confronto armado, potencializa esse desafio (…)”

As autoras também falam do papel fundamental dos agentes de saúde da família. “A partir deles temos os primeiros relatos da violência e suas consequências. Eles são os nossos olhos, braços e pernas dentro do território. Cada fala, discurso, sentimento e questionamentos deles são o reflexo da comunidade e uma extensão de nós enquanto equipe técnica.”

Ana Carolina e Juliana perceberam que os moradores de comunidade são mais suscetíveis a doenças psicológicas, como síndrome do pânico e depressão. Agora, elas estão fazendo um trabalho na farmácia da unidade onde atuam para quantificar a relação entre liberação de benzodiazepínicos (calmantes) em dias após o tiroteio ou fechamento da unidade por falta de segurança.

Em uma visita ao Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) na semana passada, um caso me remeteu à fala da médica no início do texto. Um idoso com câncer de pênis, que atingiu os canais linfáticos. Doente terminal, caso incurável muito provavelmente associado à falta de higiene íntima e às baixas condições socioeconômicas. Como diria a doutora, mais um diagnóstico de vida de merda.