fonte: O Globo

por Alfredo Guarischi – médico

Temas ligados à saúde frequentemente são manchetes, algumas boas e outras ruins. Semana passada, um grande e respeitado laboratório farmacêutico multinacional emitiu um “recall” mundial para um dos seus produtos mais vendidos para tratar hipertensão arterial, a valsartana> Isso aconteceu porque foram detectados lotes do medicamento contaminados com N-nitrosodimetilamina, substância que pode causar câncer.

A Agência Européia de Medicamentos descobriu que 2.300 lotes de valsartana, fabricados na China e distribuídos na Alemanha, Suécia, França, Canadá, entre 18 outros países europeus, sofreram essa contaminação, possivelmente de forma involuntária, decorrente de uma mudança do seu processo industrial.

Esse fato é preocupante e mostra a seriedade de entidades vigilantes, muito diferente do absurdo que vem ocorrendo no Brasil. Contrariando a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de garantir a qualidade dos medicamentos, o Ministério da Saúde vem importando e distribuindo, desde 2017, para crianças portadoras de leucemia linfocítica aguda (LLA), uma asparaginase chinesa, mais barata, que simplesmente não foi estudada para essa patologia pediátrica. Ela vem sendo importada para substituir o produto usado aqui e em todos os países desenvolvidos, por anos e com sucesso.

A asparaginase é um medicamento fundamental no tratamento da LLA, e, por isso, oncologistas pediatras brasileiros, com a ajuda da comunidade científica internacional, realizaram, em três diferentes laboratórios, estudos que detectaram grande quantidade de proteínas estranhas nessa asparaginase chinesa, o que compromete a qualidade do medicamento. Posteriormente, testes comprovaram baixa concentração do produto chinês e elevados níveis de anticorpos antiasparaginase nos animais de experimentação.

Por fim, o Ministério da Saúde foi proibido pelo Ministério Público Federal de importar esse produto, mas “lavou as mãos” e transferiu sua responsabilidade pela importação do produto de qualidade comprovada para os subfinanciados hospitais credenciados pelo SUS. Diante das reclamações dos hospitais e dos pacientes, o ministério alegou que o medicamento está em falta porque o governo está proibido de continuar sua importação. É uma completa inversão dos fatos.

O equívoco do ministério tem agora um novo capítulo, com a divulgação do estudo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que analisou o resultado do tratamento de 20 crianças. Foi detectada a atividade do remédio em apenas 2% dos pacientes que receberam a droga chinesa, ao passo que, com o uso da asparaginase comprovadamente eficiente, essa porcentagem chega a 75%.

É extremamente preocupante a postura do Ministério da Saúde de decidir pela lei do menor preço e ignorar a necessidade da comprovação da eficácia e da segurança de produtos farmacêuticos, entre outros. Como ouvi de uma pesquisadora, “quem utiliza uma droga sem testes clínicos comete um enorme equívoco e será julgado pela História, que já está sendo tristemente protagonizada por mais de 4 mil vítimas dessa asparaginase chinesa”.

Para esses pequeninos pacientes, não haverá ‘recall’.