fonte: O Globo

por Alfredo Guarischi

Conheci muitos cirurgiões, de todos os tipos, mas sempre me fascinei pelos que não têm receio de enfrentar debates científicos, independentemente do oponente ou da plateia.

Recentemente, necessitei deixar compressas no abdômen de um paciente com forte hemorragia. Elas puderam ser retiradas dias depois e sem dificuldades, quando os fatores da coagulação foram controlados.

Esse fato excepcional me lembrou um congresso sobre trauma em 1972, num hospital de emergência do Rio de Janeiro. Eu estava no penúltimo ano do curso médico. Era um aprendiz de cirurgião. O mais ilustre convidado do evento era o renomado cirurgião Gordon Madding, que, naquele ano, acabara de publicar um livro sobre o tratamento do traumatismo do fígado, no qual relatava sua imensa experiência durante a Segunda Guerra Mundial.

Em sua palestra, ele afirmou enfaticamente que o uso de tamponamento com compressas, pela “desastrosa hemorragia que ocorria quando de sua retirada”, estava proscrito e defendeu exclusivamente as técnicas de ligadura dos vasos em sangramento ou a retirada da área comprometida do fígado. Ninguém ousava discordar dele, exceto Hugo dos Santos, um veterano cirurgião com treinamento na França, pai de um colega de minha turma de faculdade.

De forma direta, ele lembrou o texto de James Pringle (1863-1941), cirurgião escocês, que em 1902 descreveu uma técnica de controlar a hemorragia com o tamponamento com compressas: “… o controle permanente de hemorragia é mais efetivo com a ligadura do tecido hepático. Porém, nos casos em que isso não é possível, resta o tamponamento com compressas”.

A plateia não gostou do debate técnico e filosófico que se seguiu sobre a cirurgia ideal e a possível, mas ouso dizer que estavam acovardados diante do famoso convidado. Hugo, não. Vibramos!

A vida seguiu e em 1977, na principal conferência da Sociedade de Cirurgia do Trato Alimentar, Alexander Walt, cirurgião-chefe de uma famosa universidade dos EUA, afirmou: “Eu não defendo o tamponamento como prática padrão, mas defendo que o cirurgião judicioso que escolhe esse método não deve de modo algum temer a perda sussurrada de sua habilidade cirúrgica”. Seria tão bom se Hugo pudesse ter visto a face incrédula dos presentes, alguns dos quais haviam sussurrado após o congresso do Rio de Janeiro.

Dr. Hugo dos Santos nada deixou escrito dessa passagem, mas a música “Filosofia”, de Noel Rosa, interpretada pela grande cantora Marília Batista, esposa do Dr. Hugo, ajuda a entender esses corajosos cirurgiões que salvam vidas, diante de dificuldades e excepcionalidades. Como escreveu o poeta: “O mundo me condena, e ninguém tem pena / Falando sempre mal do meu nome / … / Mas a filosofia hoje me auxilia / A viver indiferente assim / Nesta prontidão sem fim / Vou fingindo que sou rico / Pra ninguém zombar de mim /… / Quanto a você da aristocracia / Que tem dinheiro, mas não compra alegria / Há de viver eternamente sendo escravo dessa gente / Que cultiva hipocrisia”.