fonte: CIPE

São Paulo, 1º de outubro de 2019

O linfangioma (modernamente chamado preferencialmente de malformação linfática) é uma doença congênita causada  pelo  desenvolvimento anormal dos vasos  linfáticos, provocando o surgimento de tumores formados por múltiplos cistos preenchidos por líquido linfático, de tamanhos variados, que podem atingir um grande volume. Ocorre mais frequentemente no pescoço, mas pode atingir qualquer localização da anatomia. Embora seja uma doença relativamente incomum (1 a 5:10.000 nascidos vivos), considerando a taxa de natalidade do país (14 nascidos vivos/1.000 habitantes/ano numa população aproximada de 200.000.000 pessoas), em torno de 1.000 crianças afetadas nascem no Brasil a cada ano, num cálculo aproximado.

A doença apresenta um alto nível de morbidade, que varia desde deformidades cervico-faciais que determinam problemas sociais graves até problemas clínicos sérios e potencialmente fatais, principalmente pela chance de causar dificuldades respiratórias secundárias à compressão da laringe e da traquéia (as estruturas por onde passa o ar para os pulmões). Como agravante, casos inicialmente controlados podem sofrer piora brusca por causa de infecções secundárias e/ou sangramentos espontâneos ou pós-traumáticos dentro das lesões, levando o paciente a apresentar insuficiência respiratória aguda com risco de morte imediata se não for possível atendimento emergencial com intubação traqueal ou, em alguns casos, realização de traqueostomias.

Atualmente o tratamento dos linfangiomas é feito através de um processo de esclerose dos vasos linfáticos anormais envolvidos, injetando-se na lesão medicamentos adequados para esta finalidade. O tratamento cirúrgico é reservado para casos específicos, muito incomuns, que apresentem contraindicações ou resposta inadequada ao uso das medicações.  A escolha do tratamento medicamentoso, ao contrário do que se pode supor inicialmente, não se deve apenas a esta ser a opção de mínima invasividade. O fato é que as cirurgias para linfangiomas têm uma morbidade muito grande, por exigir dissecções cirúrgicas agressivas em regiões anatomicamente delicadas, que abrigam vasos sanguíneos de grande calibre e nervos importantes, com grande risco de lesões secundárias permanentes, independentemente da capacidade técnica do cirurgião. Outro problema é que o risco de recorrência de linfangiomas tratados cirurgicamente é muito elevado, maior do que 1 caso a cada 5 pacientes operados.

Há duas drogas que são utilizadas e reconhecidas mundialmente como estado da arte para o tratamento dos linfangiomas (chamado  de escleroterapia): o OK-432 (Picibanil®), um imunoterápico patenteado e fabricado no  Japão que não é comercializado no Brasil e a bleomicina, um quimioterápico de uso rotineiro no tratamento de alguns tumores malignos, que tem sido a droga de escolha para o tratamento dos linfangiomas no Brasil. O uso de  outras drogas para esta finalidade não foi, até o momento, validado cientificamente em protocolos clínicos.

Ocorre que a importação do princípio ativo da bleomicina foi suspensa no Brasil pela ANVISA desde agosto de 2017 devido a questões técnicas na fábrica do medicamento (portal.anvisa.gov.br/descontinuacao-de-medicamentos),   levando à indisponibilidade da medicação para uso clínico. Este problema, persistente até o momento, tem levado  a questões graves na rede pública de saúde, que vão desde a indisponibilidade da droga para o tratamento de doenças malignas até a impossibilidade prática de tratar crianças portadoras de linfangiomas.

Várias sociedades médicas têm comunicado problemas gerados pelo desabastecimento de bleomicina no Brasil. As Sociedades Brasileiras de Hematologia e Hemoterapia, Transplante de Medula Óssea, Linfoma e Leucemia, Oncologia Pediátrica e Oncologia Clínica assinaram carta pública solicitando soluções para o problema    (https:http://abhh.org.br/noticia/anvisa-responde-a-abhh-sobre-a- descontinuidade-de-medicamentos-onco-hematologicos-leia-na-integra/, https:http://www.abrale.org.br/abrale-noticias/341-bleomicina-esta-em-falta).

Relatos de alteração em esquemas clássicos de quimioterapia para linfomas, comunicações públicas do problema pelas sociedades médicas e de defesa dos pacientes, demandas judiciais pelos medicamentos (https:http://panoramafarmaceutico.com.br/2018/09/04/falta-de-respostas-estimula-pacientes-a-buscar- solucao-na-justica/)       e   campanhas públicas pedindo a resolução do problema (https:http://www.facebook.com/mblivre/posts/liberaanvisa/1004016123055864/)

https:http://twitter.com/hashtag/bleomicina.

Com relação aos linfangiomas, há muitos relatos, em diversos estados do país, de problemas de desabastecimento da medicação (https:http://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/pacientes-com- doenca-rara-em-cuiaba-estao-sem-remedio-para-tratamento-apos-suspensao-da-anvisa.ghtml, https:http://defatoonline.com.br/canais/saude-e-bem-estar/noticias-saude-e-bem-estar/2018/07/10/sem- medicamentos-bleomicina-no-mercado-itabirano-de-1-ano-tem-tratamento-de-doenca-rara-paralisado/,         https:http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/07/falta-de-droga-contra-lesao- vascular-suspende-terapia-de-criancas.shtml,      http:http://clicfolha.com.br/imprimir-materia/80890/anvisa- suspende-medicamento–para-tratamento-de-doenca-rara, https:http://www.diariodoaco.com.br/noticia/0060697-mae-relata-dificuldades-em-tratar-doenca-rara-do-filho-).

Vários cirurgiões pediátricos têm comunicado a esta sociedade o recebimento de casos protraídos ou complicados  de linfangiomas congênitos pela impossibilidade de tratamento prévio, eventualmente com complicações agudas   que exigiram terapia intensiva prolongada, frente a uma dificuldade intransponível em obter a medicação nos vários hospitais públicos, embora eventualmente seja possível a obtenção através de importação, na rede privada.

A ANVISA tem afirmado em várias ocasiões que o problema se deve ao desinteresse da indústria farmacêutica em  fornecer o medicamento no Brasil, mas, independentemente das razões, nós e os pacientes precisamos de uma solução: é uma questão de saúde pública e é papel do gestor público de saúde encontrar uma solução razoável. A   alternativa de importação em caráter excepcional de medicamentos (http:http://www.sbpc.org.br/noticias-e-comunicacao/importacao-de-medicamentos-sem- registro-na-anvisa/) não é adequada, em especial no sistema público de saúde, pelo tempo prolongado para a obtenção efetiva da medicação e mecanismos de gestão de compras pouco ágeis e com muitas restrições legais, processuais e burocráticas, além do caráter de excepcionalidade.

Considerando estes argumentos e o grau de importância da situação, já indevidamente prolongada por anos, sendo esta uma doença com risco eventual de morte, a CIPE solicita providências governamentais urgentes para resolver a questão da disponibilidade de bleomicina no país e atender às necessidades dos pacientes portadores de  linfangiomas, sem esquecer da necessária solidariedade aos colegas e pacientes que necessitam da mesma droga para tratamento oncológico.

Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica – CIPE