fonte: Saúde Business

Num ensolarado domingo do final de dezembro de 2020, surgiu um alerta de “desastre interno” em hospitais do sul da Califórnia (EUA). Abarrotados de pacientes com Covid-19, eles passaram a enfrentar um problema comum nos países de baixa e média renda (LMICs): falta de oxigênio medicinal. Pelo menos 5 hospitais no Condado de Los Angeles declararam “emergência máxima” quando a quantidade de O2 passou a ficar aquém da demanda. Segundo a gestão sanitária do Condado, não foi só uma simples falta de oxigênio, mas o ‘desaguar’ de uma série de problemas de alocação de gás, envolvendo desde a falta de recipientes, passando por encanamentos antigos se rompendo pela grande quantidade de gás circulante, até chegar a um transporte criogênico de alto risco (neve, trânsito, contaminação dos motoristas, etc.). Como acontece nos hospitais antigos do Brasil (ou em qualquer parte do mundo), a demanda e o fluxo foram tão excessivos que o sistema alimentador não conseguia manter pressão suficiente nas tubulações. Além disso, o fluxo de O2 foi de tal ordem que este passou a congelar nos dutos. “Obviamente que quando congela, você limita o fluxo necessário do produto”, explicou a Dra. Christina Ghaly, Diretora dos Serviços de Saúde do Condado de Los Angeles. “Alguns hospitais foram forçados a mover pacientes para os andares mais baixos, onde é mais fácil fornecer oxigênio já que é menor a necessidade de pressão do que nos andares mais altos”, completou Ghaly.

Para entender por que a distribuição de oxigênio médico passou a entrar em sinistro ao redor do mundo é necessário saber que ‘enquanto um paciente não-Covid intubado recebe em média 8 litros de oxigênio por minuto, os covidianos consomem mais de 60 litros por minuto’. Em 1º de novembro de 2020, Los Angeles apresentava uma média de 1.300 casos de Covid-19 por dia, em dezembro já eram 14.000 casos. “Oxygen-supply-collapsed!”, escreveram os jornais da California quando os problemas transbordaram. O veterano e cada vez mais celebre Dr. Anthony Fauci (hoje, White House Chief Medical Advisor), quando percebeu a dimensão do noticiário, extravasou: “Estamos lidando com um problema extraordinário que precisa ser resolvido. Tenho trabalhado nesse setor há 40 anos e a ideia de falta de oxigênio nunca passou pela minha cabeça, até que de repente me acertou bem na testa quando estávamos vendo a escassez também nos Estados Unidos. Só então eu dei uma olhada para traz e percebi o que estava acontecendo em alguns dos países de baixa e média renda”. Fauci tem razão, o mundo pode estar enfrentando a maior crise em oxigenoterapia desde o início da sua utilização, por volta de 1917.

Quando o paciente pandêmico entra no CTI, imediatamente recebe uma máscara de O2. Um giro rápido na válvula de cabeceira faz encher rapidamente seus pulmões, sendo que em muitos casos a sua melhora é imediata e evidente (perto de 5% dos pacientes com Covid-19 precisam de ventilador, e 15% de oxigênio suplementar). Antes da pandemia, nenhum intensivista ficava preocupado com a escassez do produto, mas nos últimos meses a tensão cresceu. Mais de meio milhão de pacientes com Covid-19 em LMICs necessitam hoje de 1,1 milhão de cilindros de oxigênio por dia (fonte: OMS). Como tudo no surto de Sars-CoV-2, o acesso global a oxigenoterapia também é desigual: quase metade dos hospitais nos países de baixa e média renda tem fornecimento de oxigênio inconsistente ou inexistente. É paradoxal que uma das substâncias mais abundantes na Terra (21% do ar que respiramos) esteja levando milhões de pessoas a morrer por falta dela.

O oxigênio médico passou a ser um produto supervalorizado em 2020, e, portanto, sujeito as ‘leis de mercado’ (oficiais, oficiosas e marginais), que são sempre mais injustas com as nações de menor renda. Em algumas regiões do mundo o O2 está mais valorizado do que um barril de petróleo. A Covid-19 fez a demanda atingir níveis absurdos, com cerca de 1 em cada 5 pacientes precisando (muito) do produto, e isso, como sempre, estimula o black-market. No México, por exemplo, com quase 200 mil óbitos, há relatos constantes de roubo de cilindros de O2 em hospitais e clínicas. Em Honduras, com US$ 60 por semana você aloca um cilindro pressurizado em sua residência, mas quem quer comprá-lo tem de importar o produto da China por cerca de US$ 500. Esse tipo de comércio passou a ser comum na América Latina, incluindo no Brasil. Vendedores ambulantes emergem vindo das camadas mais carentes, oferecendo oxigênio na vacuidade de oferta do setor regulado. Em alguns países da África, por exemplo, o preço no mercado formal de um cilindro de O2 (6,8 metros cúbicos, suficiente para tratar um adulto-covid por cerca de 24 horas) pode chegar a US$ 150 (alguns hospitais consomem até 80 cilindros por dia). Segundo a White Martins, uma das maiores fornecedoras do mundo, o consumo de oxigênio líquido medicinal de seus clientes no Brasil cresceu 56% nas duas primeiras semanas de março em relação a primeira quinzena de dezembro de 2020, obrigando a empresa a implementar planos adicionais de contingência (fonte: Valor Econômico, 23/03). No Peru, centenas de pessoas podem estar neste momento esperando em longas filas para obter oxigênio medicinal. Há poucas semanas, em San Juan de Lurigancho, região do nordeste de Lima, uma gigantesca fila esperava em frente a uma fábrica recém-inaugurada pela paróquia de San Marcos, que oferecia oxigênio gratuito.

Ainda há pouca tecnologia digital acessível no “caminho do gás”, mas há luzes chegando: o ATAS O2, por exemplo, desenvolvido pela pernambucana Salvus, é um dispositivo com inteligência artificial e IoT conectado aos cilindros para rastreamento na Internet, com dados de consumo e estoque sendo transmitidos ao gestor para controle à distância do produto. Mas não basta monitorar o supply-chain do O2, a questão dos cilindros e kits de alimentação não é menos delicada. Segundo a publicação GasWorld, existem mais de 45 milhões de cilindros tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, sendo que apenas 15-20% deles estão atualmente certificados para serviços médicos em O2. Não é diferente na América Latina.

A epidemia ‘esticou a corda’ de maneira absurda, mesmo em países fora do LMCI, como o Brasil, que precisam se preocupar também com o ‘double-burden’, ou seja, lutam com altos níveis de (1) Pneumonia e (2) Covid-19 simultaneamente. Antes do surto, a pneumonia no país já dizimava anualmente 200 mil indivíduos, numa média de sete casos por hora. Nos LMICs, ela engoliu 2,5 milhões de vidas somente em 2019. A demanda caótica por O2 fez a OMS liderar em fevereiro de 2021 o “COVID-19 Oxygen Emergency Taskforce”, um consórcio mundial para mitigar o desabastecimento do produto, principalmente nos LMICs, onde a demanda já chega a 8 milhões de metros cúbicos por dia. A estrutura logística para fazer o produto chegar ao pulmão covidiano também é crítica. Carretas criogênicas, por exemplo, são conduzidas por motoristas fora dos grupos prioritários de vacinação, com legítimas dificuldades de se expor a Covid-19. Em outros casos, como na Colômbia, existem barreiras sanitárias regionais que dificultam o acesso das carretas. Sem falar que a maioria dos hospitais na América Latina não estava aparelhada antes da pandemia para receber e armazenar duas ou três vezes mais gás do que o normal.

Mas a maior criticidade está na África (54 países com 1,3 bilhões de habitantes). Um relatório do Bureau of Investigative Journalism, publicado em 2020, mostrou que o preço de O2 na África Subsaariana “é pelo menos cinco vezes mais caro do que na Europa ou nos EUA”. John Nkengasong, diretor dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças, em entrevista ao The Independent em fevereiro último, explicou ‘que a falta de oxigênio é a principal razão pela qual os pacientes com Covid-19 na África têm maior probabilidade de morrer’. Diante desse quadro, a The Lancet fez uma pergunta relevante em seu artigo “Medical oxygen crisis: a belated COVID-19 response” (março/2021): afinal, quantos pacientes – com Covid-19 e outras doenças – morreram em 2020 por não terem acesso a O2?. A resposta é difícil, mas Hamish Graham, cientista clínico e especialista em oxigenoterapia no Murdoch Children’s Research Institute (Austrália), estima que em 2020 aproximadamente 38 milhões de pacientes nos LMICs foram internados em hospitais com hipoxemia, sendo 8 milhões com Covid-19. A maioria dos demais pacientes eram crianças, incluindo 6 milhões de recém-nascidos e 5 milhões de jovens com até 15 anos (pneumonia), sem falar em outros 11 milhões de adultos com outras patologias. Graham vai mais longe: “antes da pandemia, 9 em cada 10 hospitais nos LMICs não tinham acesso à oximetria de pulso ou a qualquer oxigenoterapia, sendo que apenas 20% dos pacientes que precisavam de oxigênio médico o receberam”.

Manaus, em janeiro de 2021, será um “estudo de caso lendário e profético” sobre os problemas que podemos ter à frente, mas está longe de ser o único. A OMS advertiu em junho de 2020 que “80% do mercado de oxigênio médico está nas mãos de algumas poucas empresas e a demanda continua superando a oferta”. De junho a março de 2021 a situação da pandemia só piorou e as necessidades de O2 só cresceram, sendo que em algumas regiões do mundo é mais difícil chegar oxigênio do que os imunizantes contra a Covid-19. Por isso, quando respirar fundo e ‘inalar’ oxigênio para sua caixa pulmonar, ‘exale’ com cuidado e jubilo, aproveitando cada mm3, esse pode ser o ativo ambiental mais valioso dos nossos tempos.