fonte: O Globo

A pandemia do novo coronavírus vai agravar o problema das chamadas “superbactérias”, sugere um novo estudo, porque o uso indiscriminado de antibióticos em pacientes de Covid-19 impulsiona o surgimento de variantes bacterianas resistentes a tratamento. Isto ocorre porque as bactérias que sobrevivem ao remédio se multiplicam passando para frente os genes que as fizeram resistir.

Segundo o trabalho, criou-se no meio médico uma cultura de receitar essa classe de drogas (que combate bactérias, não vírus) em grande parte dos casos da Covid-19, porque se acreditava que ocorriam infecções bacterianas paralelas, que agravariam muitos casos. Essas circunstâncias existiram, afirmam os cientistas, mas em uma proporção muito menor do que se acreditava.

Segundo a infectologista Ana Cristina Gales, coordenadora do comitê de resistência bacteriana da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), no começo da pandemia muitos médicos usaram seu conhecimento prévio sobre gripe — na qual os índices de coinfecção são altos — para tratar os pacientes com coronavírus.

Trabalho analisou 48 mil pacientes

No novo estudo, conduzido por um pool de universidades britânicas, verificou-se que cerca de 13% dos pacientes de Covid-19 têm de fato coinfecção com alguma bactéria, mas antibióticos estavam sendo receitados para um proporção muito maior. Uma parcela de 37% daqueles avaliados tomaram alguma droga dessa classe para tratamento de casos leves, e entre os hospitalizados a taxa foi de 85%. O uso antibiótico foi maior durante março e abril de 2020, mas caiu durante maio.

A conclusão descrita no estudo, publicado na revista médica The Lancet Microbe, partiu de um trabalho com mais de 48 mil pacientes, apenas no Reino Unido, mas tem implicações globais, dizem os autores.

Em outubro de 2015, a OMS lançou o Sistema Global de Vigilância Antimicrobiana (GLASS) para monitorar a resistência bacteriana a antibióticos. No último relatório, publicado em 2018, com informações de 22 países, mostrou que a proporção de bactérias resistentes a pelo menos um dos antibióticos mais usados apresentou uma enorme variação entre os diferentes países, indo de zero a 82%. A resistência à penicilina, remédio usado há décadas para tratar a pneumonia, chegou a ter 51%.

Antonia Ho, infectologista da Universidade de Glasgow que liderou o trabalho, afirma que é preciso criar diretrizes internacionais para o tratamento de Covid-19 e vincular a prescrição de antibióticos e antimicrobianos de amplo espectro (que combatem uma gama variada de bactérias) à confirmação da coinfecção nos pacientes. Na opinião da médica, porém, isso precisa ser feito sem um ímpeto punitivo em relação aos médicos que vinham fazendo uso generalizado dos antibióticos.

“Em qualquer avaliação sobre o uso destes antimicrobianos no tratamento de pacientes com Covid-19, é essencial reconhecer que clínicos no Reino Unido e no mundo estão lutando contra uma emergência médica global”, escreveu a médica, em comunicado à imprensa. “Dados os desafios sem precedentes apresentados pela pandemia, não era surpresa que os médicos iriam prescrever antibióticos, particularmente nos primeiros meses da pandemia, quando pacientes eram internados muito doentes, os tratamentos eficazes eram limitados, e o possível papel de coinfecções era desconhecido.”

Com base em seus resultados, os autores recomendam restringir a prescrição de antibióticos sem um diagnóstico confirmado de coinfecção, assim como escolher o medicamento mais específico, quando necessário, para patógenos prováveis e padrões de resistência locais, além de encorajar os médicos a interromper o remédio se a co-infecção for considerada improvável e os testes confirmarem que os pacientes não têm uma infecção bacteriana. A indicação de uso deve ser apenas quando for confirmada a coinfecção ou a infecção secundária, aquela que ocorre dentro do hospital em decorrência dos procedimentos médicos para tratar a síndrome respiratória grave.

— Se o médico mantém o antibiótico desde que o paciente é diagnosticado com Covid-19, ocorre uma seleção de bactérias resistentes. E, na hora de tratar a infecção que pode ocorrer na internação, ela tem chance de ser causada por uma bactéria resistente. Aí, será necessário o uso de antibiótico de espectro ampliado. E vira uma bola de neve, porque quanto mais se amplia, mais a bactéria vai se adaptando e ficando mais resistente — alerta Gales.

Um dos antibióticos para os quais os pesquisadores alertam abuso no estudo é a azitromicina. No caso do Brasil, o uso indiscriminado dessa droga pode vir a se mostrar particularmente preocupante, porque ela fazia parte do “kit de tratamento precoce” para a Covid-19 que o governo federal patrocinou até recentemente.

— Quando temos infecções do trato respiratório comunitárias (que acontecem fora dos hospitais), como pneumonias, otite média, amigdalite, usamos o macrolídeo (grupo do qual a azitromicina faz parte) como opção de tratamento. Diferentemente dos Estados Unidos, no qual a taxa de resistência a este tipo de remédio é alta e ele não é mais usado para estas doenças, no Brasil nossa é baixa. Minha preocupação é: será que após a pandemia, ainda poderemos utilizar a azitromicina para tratar estes tipos de doença no nosso país como utilizávamos antes? Muito provavelmente, não. Teremos um impacto (no sentido de gerar resistência) não apenas nas bactérias que estão dentro do hospital, mas provavelmente também na comunidade — afirma Gales.

A especialista explica que existem trabalhos experimentais que mostram que azitromicina inibe, in vitro, a replicação de vírus. Além disso, há outros estudos que mostram que antibióticos macrolídeos conseguem regular a resposta imunológica do corpo humano.

— Então, muitas vezes, quem quis prescrever a azitromicina para a Covid era contando que, teoricamente, (o remédio) criaria uma imunomodulação, iria regular a resposta imune do paciente à presença do vírus.