fonte: Folha de SP
“Eu levava muito a sério o trabalho e a faculdade, e tinha aquela vontade de dar cem por cento em tudo”, conta Pedro Medeiros, 33, bioinformata.
Em 2017, ele cursava sua segunda graduação, em farmácia, na USP (Universidade de São Paulo), trabalhava em uma indústria na região do ABC Paulista e morava na zona leste de São Paulo. Pedro conta que percorria cerca de 100 km por dia no transporte público e sofria uma privação de sono muito grande para dar conta de todos os seus compromissos.
“Eu já fazia terapia e um dos principais assuntos que tinha com a minha psicóloga era sobre uma sensação de esgotamento que me acompanhava o tempo todo, mesmo quando eu não estava trabalhando”, recorda.
O bioinformata já fazia tratamento para transtorno de ansiedade, mas viu a situação se agravar nessa época. “O ambiente de trabalho acabou ganhando para mim uma carga emocional muito grande. Eu comecei a adquirir uma certa repulsa por ele”, admite.
Outro sintoma que Pedro apresentava é chamado de “brain fog”, ou névoa cerebral, em português, que é a dificuldade de concentração e sensação de confusão mental.
Com todas essas ocorrências e os relatos que fazia durante as sessões de terapia, Pedro recebeu de sua psicóloga o diagnóstico de burnout.
A síndrome é caracterizada por exaustão emocional, despersonalização —quando o indivíduo começa a agir com frieza no ambiente profissional— e baixa realização no trabalho.
Em 1º de janeiro deste ano, o burnout ganhou uma descrição mais detalhada na CID-11 (Classificação Internacional de Doenças) pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Com a mudança, a síndrome passa a ser estabelecida como um fenômeno ocupacional.
O psiquiatra e neurocientista José Fernandes Vilas, autor do livro “Quando o Sucesso Vira Burnout”, explica que essa condição é comum em pessoas que são extremamente dedicadas ao trabalho.
“Quando estamos com o coração no trabalho, não conseguimos enxergar as ciladas. A pessoa vai se entregando sem medidas até não suportar mais. E para alguns empregadores, uma pessoa apaixonada pela profissão, cheia de sonhos, é um prato cheio para o abuso”, ressalta Vilas.
Foi também a dedicação extrema ao trabalho que levou a veterinária Loren D’Aprile a receber o diagnóstico de burnout.
Desde quando ainda estava na graduação, conta Loren, ela questionava as práticas de ensino e de pesquisa em relação aos animais. Também nesse período já resgatava bichos em situação de vulnerabilidade.
Depois de se formar, foi fazer residência em medicina veterinária do coletivo na UFPR (Universidade Federal do Paraná), onde atuava com animais vítimas de maus tratos e que estavam com acumuladores.
Além da grande carga emocional que seu trabalho exigia, Loren trabalhava cerca de 12 horas por dia e deixou de lado a vida pessoal.
“Eu me sentia responsável por esses animais. Cortei o cabelo bem curto para não perder tempo com isso, parei de fazer atividade física, comia quando dava, dormia menos e engordei. Sentia muito cansaço o tempo todo, mas não parava”, relata.
Foi então que a veterinária começou a pesquisar sobre seus sintomas, percebeu que estava enfrentando um burnout e procurou um psiquiatra.
“O burnout afeta principalmente profissionais da área de serviços ou cuidadores, como profissionais da saúde e da educação, mas também há estudos em categorias como policiais, assistentes sociais, agentes penitenciários e motoristas. Ou seja, não escolhe classe social”, revela Bruno Chapadeiro, psicólogo e professor adjunto em psicologia do trabalho e organizacional da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Ao trabalhar por muitas horas, seja por amor ao ofício ou por necessidade financeira, o profissional pode chegar a um quadro de esgotamento e sentir a necessidade de se afastar. Foi o que aconteceu com Pedro.
“Eu pedi demissão. Fui muito claro com minha gestora na época, que era uma pessoa que eu tinha total abertura. Eu disse que me sentia miserável trabalhando e que não estava satisfeito com meu rendimento, e que em algum momento eu não ia mais conseguir entregar o que estavam me pedindo”, conta o bioinformata.
O psiquiatra José Fernandes Vilas destaca que ter uma conversa sincera com os chefes é muito importante nessa situação. “Num primeiro momento, pode soar como expor sua intimidade. Porém servirá como sinal de alerta para o empresário e para o RH que a sua empresa pode estar sendo um gatilho para o adoecimento”, afirma.
“No burnout, o adoecimento acontece pela má administração do estresse crônico no trabalho, tanto pela dedicação extrema do funcionário quanto pela exposição ao estresse provocada pela empresa. Assim, quando há diálogo, os interesses se igualam”, observa Vilas.
O médico reforça que é preciso ter cautela antes de pedir demissão para que não haja arrependimento posteriormente.
“Em primeiro lugar, deve-se buscar tratamento. Somente após uma melhora clínica é indicado decidir sobre seu futuro na empresa”, conclui.
Além de deixar o emprego, Pedro trancou a faculdade e tirou cerca de um ano para poder descansar. “Só depois de um tempo relativamente grande que comecei a sentir a névoa mental se dissipar e que meu raciocínio estava voltando”, confessa.
Ele continuou o tratamento com a psicóloga, terminou a segunda graduação, começou um mestrado e se reinseriu no mercado de trabalho. Atualmente, trabalha no regime de home office e não precisa mais se deslocar por grandes distâncias.
Loren, após iniciar o tratamento com o psiquiatra, terminou a residência e voltou para São Paulo para cursar um mestrado. Ela retomou as atividades que gostava, mas que tinha deixado de lado por causa da dedicação aos animais. Voltou a fazer academia e a se alimentar melhor, regulou o sono e começou a praticar mindfulness.
Hoje ela mora em Bom Jesus, no Piauí, e atua como assessora técnica e coordenadora de voluntariado do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. A veterinária continua trabalhando com bichos em situação de maus tratos, mas procura sempre encontrar um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal para não cair novamente em um quadro de esgotamento.
“Depois que passa o vendaval do burnout e você aprende onde está o gatilho do adoecimento, você consegue ver as situações com mais clareza”, destaca o psiquiatra José Fernandes Vilas.
O médico ressalta a importância de procurar um psicólogo para entender a partir de que ponto o paciente ultrapassou os limites no trabalho, definir estratégias e, caso necessário, se consultar com um psiquiatra para verificar se há necessidade do uso de medicação.
“Nesse período de reestruturação, é importante investir tempo com a família, praticar atividades físicas, regular o sono e se desligar totalmente da empresa. Jamais, em tempo de afastamento médico, manter muito contato com amigos da empresa, pois sempre haverá um ou outro que tocará no assunto adoecimento ou irá trazer informações sobre o trabalho e acabar acionando gatilhos”, adverte.
“Entenda que esse período é para ressignificar a forma que você deve realizar a sua função, e não ser usado como masoquismo para se sentir pior.”