fonte: MedScape

Na contramão de muitas profissões, não há limite de idade para exercer a medicina. De acordo com as normas internacionais, os pilotos de avião, por exemplo, que são responsáveis pela segurança de muitas vidas humanas, devem se aposentar aos 60 anos caso trabalhem sozinhos ou aos 65 se tiverem um copiloto. No Brasil, porém, esse limite etário não existe – nem para os aeronautas, nem para os médicos.

A única restrição ao exercício profissional no contexto médico é a aposentadoria compulsória imposta aos professores de medicina que lecionam em universidades públicas, tanto estaduais como federais, a partir dos 75 anos de idade. Mas, ainda assim, esses profissionais podem continuar exercendo atividades administrativas e de pesquisa. Depois da “expulsória”, como essa aposentadoria compulsória costuma ser chamada, os professores e professoras que mais se destacaram ou contribuíram para a instituição e a ciência podem receber o título de professor emérito.

No setor privado, os limites etários não são formais, mas inibem a contratação de profissionais de meia-idade.

No Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/HCFMUSP), um dos maiores centros de ensino e pesquisa em doenças cardiovasculares e pulmonares do mundo, vários especialistas octogenários lideram estudos e equipes. Um deles é o cirurgião cardiovascular Dr. Noedir Stolf, 82 anos, que opera quase todos os dias e coordena estudos sobre transplante, assistência circulatória mecânica e cirurgia da aorta. Também há o cardiologista clínico Dr. Protásio Lemos da Luz, com 82 anos, que orienta pesquisas sobre temas como aterosclerose, endotélio, microbiota e diabetes (o efeito protetor do vinho na aterosclerose é uma de suas pesquisas mais conhecidas).

Parar de trabalhar não igualmente está nos planos da Dra. Angelita Habr-Gama, 89 anos, que se destaca entre os médicos mais longevos em franca atuação. Com mais de sete décadas de carreira, a médica é referência mundial em coloproctologia. Foi a primeira mulher aceita como residente de cirurgia no HCFMUSP, onde mais tarde fundou a disciplina de coloproctologia e o primeiro programa de residência na especialidade do HCFMUSP. Em abril de 2022, a Dra. Angelita entrou para o ranking de 100 cientistas mais influentes do mundo, indicado por pesquisadores da Stanford University, nos Estados Unidos, e publicado no periódico PLOS Biology.

Em 2020, a médica foi sedada, entubada e internada por 54 dias na unidade de terapia intensiva do Hospital Alemão Oswaldo Cruz em função de uma infecção pelo SARS-CoV-2. Após a alta, ela não levou mais de 10 dias para voltar ao trabalho – e ainda acrescentou aulas de xadrez à rotina. “Levantar e trabalhar me dá muita alegria. O trabalho é meu grande hobby. Nunca, felizmente, ninguém me viu lamentar da vida”, disse a Dra. Angelita ao Medscape em português, depois de remarcar duas vezes a entrevista por causa de cirurgias de emergência.

“Os médicos podem ter uma longevidade profissional que não se vê em outras profissões, em que a pessoa se aposenta e se retira da atividade ou vai fazer outra coisa para se entreter. Os médicos podem se aposentar de um vínculo empregatício ou público e continuar desenvolvendo uma atividade médica em consultório, como administrador ou consultor”, disse o Dr. Ângelo Vattimo, 1º Secretário do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). A entidade costuma organizar uma cerimônia para homenagear os profissionais que completaram 50 anos de atividade com a entrega de um certificado e uma medalha gravada. “Muitos estão na faixa dos 80 anos, trabalhando e dando aulas. Isso sempre nos enche de alegria. Que profissão tem uma aderência tão grande e por tanto tempo?”, observou o Dr. Ângelo.

No meio médico, quanto maior a faixa etária, menor a proporção de mulheres. De acordo com a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2020, apenas 2 cada 10 profissionais atuantes após os 70 anos de idade são mulheres.

Nem todo mundo passa dos 80 com a vitalidade da Dra. Angelita, pois o impacto do envelhecimento é desigual. “Se você observar um grupo de pessoas de 80 anos, verá muito mais variedade do que em um grupo de pessoas de 40 anos”, disse o Dr. Mark Katlic, médico e chefe de cirurgia da LifeBridge Health System, nos EUA, que dedicou uma década de sua vida ao estudo do tema. O Dr. Mark falou sobre o assunto em uma entrevista ao Medscape publicada no artigo: “ How Old Is Too Old to Work as a Doctor? ”, que aprofunda a discussão sobre as avaliações das habilidades e competências de médicos idosos sendo feitas em empresas estadunidenses. Por lá, o assunto está em evidência e vem provocando intensos debates.

O Dr. Mark defende a existência dos programas de triagem para médicos idosos, algo que já está sendo realizado na empresa para a qual ele trabalha, a LifeBridge Health, e em várias outras nos EUA. “Nós fazemos [a triagem em médicos idosos na LifeBridge Health], assim como algumas dezenas de instituições [estadunidenses], mas há centenas [de instituições de saúde que não realizam essa triagem]”, ressaltou à edição em inglês do Medscape.

As avaliações em função da idade enfrentam bastante resistência nos EUA. Um dos médicos contrários à iniciativa é o oncologista em atividade Dr. Frank Stockdale, Ph.D., 86 anos, afiliado à Stanford University Health. “É discriminação etária. (…) Os médicos [nos EUA] são avaliados ao longo de suas carreiras como parte do processo de acreditação – não é necessário mudar isso quando o médico chega a uma certa idade”, afirmou Dr. Frank à edição em inglês do Medscape.

A iniciativa estadunidense de instituir programas de avaliação para médicos a partir de uma determinada idade foi parar nos tribunais. Segundo o artigo publicado na edição em inglês do Medscape, “em Connecticut, a US Equal Employment Opportunity Comission (EEOC) entrou com uma ação judicial em 2020 em favor de funcionários do Hospital Yale New Haven, alegando uma política de carreira tardia feita de modo discriminatório”.

Ainda de acordo com o artigo, um caso semelhante em Minnesota, também nos EUA, chegou a um acordo em 2021, proporcionando compensação financeira aos funcionários que precisaram desembolsar recursos pessoais para as avaliações, além de exigir que o hospital em questão relatasse ao EEOC quaisquer reclamações relacionadas à discriminação etária.

É fato que o aumento da expectativa de vida e, consequentemente, da quantidade de médicos que entram na terceira idade no exercício da profissão está trazendo muitos questionamentos sobre o impacto do envelhecimento na atividade profissional. No Brasil, o tema interessa diretamente a mais de 34.571 médicos e médicas entre 65 e 69 anos de idade e a 34.237 de 70 anos ou mais. Ao todo, essa população representa aproximadamente 14,3% da força de trabalho ativa no país, de acordo com a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2020.

A grande participação de profissionais da saúde com mais de 50 anos em uma enquete realizada pelo Medscape para saber o que os médicos pensam sobre o limite de idade para exercer a profissão atesta que o tema é uma preocupação presente. De um total de 1641 participantes, 57% têm 60 anos ou mais, 17% entre 50 e 59 anos, enquanto 12% têm entre 40 e 49 anos. Dentre todos os participantes, 51% são contrários a essas limitações, 17% aprovam a ideia para todas as especialidades e 32% acham que a restrição seria interessante apenas para algumas áreas. Quanto à possibilidade de médicos em idade avançada passarem por avaliações periódicas, as opiniões estão divididas: 31% acham que devem passar sim, em todas as especialidades. E mais: 31% acham que habilidades cognitivas devem ser testadas periodicamente em todas as especialidades, 31% consideram a possibilidade para algumas especialidades e 38% são contrários a essa abordagem.

Os profissionais querem saber, por exemplo, como (e se) a idade avançada pode interferir no seu desempenho, quais as competências necessárias para exercer suas atividades e se os critérios variam de acordo com a especialidade. “Um psiquiatra não precisa ter a acuidade visual perfeita, necessária a um dermatologista, mas é imprescindível que tenha boa audição, por exemplo”, argumentou o Dr. Clóvis Constantino, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo e ex-vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). “Já um cirurgião deve ficar em pé horas a fio em posições que podem ser desconfortáveis. Não é fácil”, disse ele ao Medscape.

Na opinião do Dr. Henrique Klajner, 82 anos, o mais longevo entre os pediatras em atividade no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, o médico não deve ser submetido a avaliações como as que tem sido feitas nos EUA. “Os médicos precisam se autoavaliar constantemente para saberem se possuem as competências e habilidades necessárias para atuar na profissão. (…) E mais: esta não é uma questão de idade, tem a ver com ética”, afirmou o pediatra.

A capacidade de se adaptar às mudanças e acatar inovações conta pontos para a longevidade profissional, defendeu o especialista. “Hoje em dia, quando interno pacientes, eu não faço mais as visitas hospitalares, o que exige uma mobilidade que corresponderia a um abuso físico para mim. Então trabalho com médicos que tomam conta dos meus pacientes internados”, disse o especialista.

O Dr. Henrique também sente que há uma distância entre as novidades aprendidas em estudos e o que pode ser oferecido com segurança aos pacientes. “Se eu precisar atender um doente internado com pneumonia grave, por exemplo, como não estou atualizado nessa área, vou chamar um pneumologista da minha confiança e abdicar dos honorários dessa internação. Mas continuarei na equipe acompanhando a evolução do paciente”, afirmou o médico.

Durante a pandemia de covid-19, o Dr. Henrique, deixou de atender presencialmente por recomendação de seu filho, o médico Dr. Sidney Klajner. Nesse período, o pediatra começou a explorar a telemedicina, o que descortinou um mundo de novas possibilidades. “Tenho feito muitas consultas on-line para dar orientações educacionais às mães que voltam para casa depois do parto, por exemplo”, contou ao Medscape em português. A hora de parar é algo que não preocupa o especialista. “Eu só vou parar quando realmente tiver um motivo muito importante. Por exemplo, se ficar impedido de escrever e de estudar, lendo e relendo um artigo sem conseguir entender o que está sendo dito. Neste momento, nada disso está acontecendo.”

Tanto nos EUA como no Brasil, os médicos raramente repassam informações aos departamentos de recursos humanos sobre colegas com sinais de declínio cognitivo ou motor que afetem o desempenho profissional. “Espera-se que os profissionais da saúde reportem seus colegas com comprometimentos cognitivos, mas muitas vezes isso não acontece”, disse o Dr. Mark ao Medscape em inglês.

Também não é comum que os profissionais informem as próprias fragilidades às instituições. Em grande parte, isso se deve à falta de políticas bem definidas para lidar com essa questão. O Medscape em português procurou vários hospitais públicos e privados no Brasil para saber se têm alguma orientação relacionada ao tema da longevidade profissional: a maioria respondeu que não. Apenas o A. C. Camargo Cancer Center informou, via assessoria de imprensa, que o tema está sendo discutido em uma comissão, mas que ainda é algo incipiente.

As sociedades de especialistas brasileiras não oferecem diretrizes ou orientações sobre os vários aspectos da longevidade profissional. O Dr. Clóvis tentou colocar o tema em pauta nos anos em que participou da gestão do CFM. “Quisemos abrir a discussão sobre o médico realmente idoso, mas não houve nenhum tipo de receptividade. Acredito que, justamente pela tradição de os médicos trabalharem até quando der, isso seja mais difícil no Brasil. (…) Ninguém sabe exatamente o que fazer a esse respeito”, afirmou ele, que é contra o uso da idade como critério para parar de trabalhar.

“Claro que esse é um referencial a ser considerado, mas eu sempre defendi a necessidade de o médico ser periodicamente avaliado, independentemente da faixa etária. E, ainda que as avaliações sejam sempre bem-vindas, em qualquer profissão, acredito que isso também não teria grande receptividade no Brasil.” Ele endossa a avaliação do conhecimento, e não das habilidades físicas, em geral investigadas pela perícia quando necessário.

A ausência de diretrizes aumenta a responsabilidade individual, e também a vulnerabilidade. “Em sã consciência, o médico não vai expor o paciente ao risco se não estiver habilitado a atendê-lo ou a fazer um procedimento cirúrgico”, disse ao Medscape o Dr. Clystenes Odyr Soares Silva, professor adjunto de pneumologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Seus próprios pares dirão que ele não tem mais condições”, disse o médico. O problema é que dificilmente os médicos admitem ou conversam sobre as suas fragilidades com os colegas, principalmente se estiverem na berlinda em decorrência da idade mais avançada. Nessa situação, a observação e a opinião dos familiares sobre a competência e as habilidades do profissional da saúde também ganham mais peso.

Em caso de comprometimento físico relacionado à idade, como a perda parcial dos movimentos da mão, por exemplo, “é de se esperar que isso ative um freio ético na pessoa”, disse o Dr. Clóvis. Quando esse freio não ocorre naturalmente, pacientes ou colegas podem denunciar o profissional, e isso pode motivar a abertura de um processo administrativo. Se a denúncia for comprovada, esse instrumento é usado para afastar os médicos sem condições físicas e/ou mentais de continuar exercendo a medicina.

“Se for algo muito sério, o médico pode ter o seu registro temporariamente suspenso, enquanto for tratado por um psiquiatra, com acompanhamento do conselho profissional. Quando receber alta, o médico recuperará seu registro [profissional] e poderá voltar a trabalhar”, explicou o Dr. Clóvis. Caso seja necessária a avaliação de um perito, o médico será então avaliado por um psiquiatra forense. Um dos psiquiatras forenses mais requisitados do Brasil é o Dr. Guido Arturo Palomba, 73 anos. “Avaliei alguns médicos por atos que foram alvo de denúncia para ver se eram pessoas normais ou não, mas nunca por circunstâncias relacionadas à idade”, disse o perito ao Medscape.

Na prática, as entidades médicas brasileiras não têm políticas ou programas para orientar os médicos que desejam envelhecer trabalhando na profissão ou aqueles que começam a sentir que estão performando de um modo diferente. “Nunca vivemos tanto e a qualidade de vida no envelhecimento, assim como o conceito de envelhecimento, são algumas das questões mais relevantes da atualidade. São temas que precisam ser mais discutidos para que se amplie a compreensão e a conscientização a esse respeito”, observou o Dr. Ângelo, do Cremesp.

Totalmente contrários às avaliações por idade, os Drs. Clóvis e Clystenes acreditam que a revalidação do título de especialista a cada cinco anos seja o melhor caminho para verificar se o médico continua apto a exercer a profissão. “Já se falou bastante sobre uma prova de conhecimentos a cada cinco anos para revalidar o título de especialista. Eu acho uma excelente ideia. A pessoa reuniria tudo o que fez em termos de cursos, congressos e outras atividades, apresentaria e obteria uma pontuação”, afirmou o Dr. Clystenes. Na prática, a recertificação do título de especialista é uma discussão que vem sendo feita há anos, e é uma bandeira defendida pela Associação Médica Brasileira (AMB), que estuda o melhor caminho para a sua implantação em conjunto com o CFM. “É importante salientar que tal medida, a princípio, não teria caráter retroativo, sendo solicitada válida apenas para profissionais formados após a entrada em vigor da recertificação”, destacou a AMB em nota enviada ao Medscape em português. Mesmo assim, a medida enfrenta resistência de parte da categoria, e não parece estar próxima.

O debate sobre a longevidade profissional é necessário e está ocorrendo em vários países. Nos EUA, o Council of Medical Education da American Medical Association (AMA) lançou, em 2021, um relatório com um conjunto de diretrizes para orientar a triagem e avaliação de médicos. O documento é fruto do trabalho de uma comissão criada em 2015 para estudar o assunto. A AMA recomenda que as avaliações de médicos idosos sejam baseadas em evidências e princípios éticos, relevantes, justas, equânimes, transparentes, verificáveis, não sejam exaustivas e contemplem apoio e proteção contra processos jurídicos. Em abril deste ano, um novo documento da AMA destacou esses princípios.

Ainda nos EUA, uma das iniciativas mais antigas para dar suporte aos médicos em processo de reciclagem, o UCSD Physician Assessment and Clinical Education Program (PACE), da University of California, San Diego, tem um braço cujo foco é a prática da medicina por mais tempo (Practing Medicine Longer). Para quem deseja saber mais acerca das discussões sobre esse tema, é possível acessar apresentações on  line sobre as experiências de Quebec e Ontario, no Canadá, de avaliação do envelhecimento médico, as perspectivas neuropsicológicas da população médica envelhecida e o que esperar do envelhecimento saudável, entre outros temas.

Criado em 1996, o PACE atende, majoritariamente, médicos que precisam responder a um requisito do conselho médico estadual. Pouquíssimos ingressam por conta própria.

A primeira parte do programa consiste em um conjunto de testes e avaliações de conhecimento e de competência principal por cerca de dois dias. Na segunda fase, o médico participa de atividades de um programa de residência correspondente. Dependendo dos resultados, o profissional pode enfrentar etapas de remediação que variam de atividades para tratar deficiências de desempenho a experiências clínicas em nível de residência.

*Reportagem brasileira com informações da matéria do Medscape em inglês “How Old Is Too Old to Work as a Doctor?”.