Além do problema das más condições
de trabalho e salários inadequados, já
nosso conhecido há muito tempo, e dos problemas
atuais de ausência de renovação
dos quadros de profissionais estatutários
nas unidades públicas de saúde (estes
vêm sendo substituídos progressivamente
por pessoal sem vínculos contratuais permanentes
ou simplesmente têm tido suas vagas extintas),
existe um movimento dos gestores de unidades de
saúde no sentido de diminuir drasticamente
o efetivo de cirurgiões pediátricos
que atuam em regime de plantão em unidades
públicas. Tal atitude tem sido justificada
por alguns com estatísticas que sugerem uma
demanda pequena por atendimento cirúrgico
especializado, em especial em horários noturnos.
A CIPERJ gostaria de apresentar alguns argumentos
contrários a esta forma de pensar, para serem
usados como esclarecimento à sociedade e
como propostas de reflexão para os gestores,
os colegas, em especial pediatras e outros especialistas
em medicina da criança, e a sociedade civil
em geral:
1. O trabalho do cirurgião pediátrico
na emergência não se limita ao número
de cirurgias efetivamente realizadas em centro cirúrgico.
Uma grande parte dele se refere ao atendimento de
crianças para pareceres, preparo de pacientes
pediátricos para cirurgias emergenciais a
serem realizadas posteriormente e à realização
de procedimentos à beira do leito, que não
têm sido computados nas análises estatísticas
apresentadas. Desta forma, usando um exemplo de
doença de alta incidência, serão
examinadas muitas crianças para que se chegue
ao diagnóstico de apendicite aguda em uma
delas e um cirurgião plantonista dedicará
parte do seu tempo a preparar eventuais crianças
portadoras de uma apendicite para a execução
posterior de uma cirurgia segura, depois da compensação
de problemas que o paciente possa estar apresentando
em decorrência de doenças anteriores
ou da própria doença aguda. Da mesma
forma, muitas vezes um cirurgião pediátrico
é chamado para prover acessos venosos essenciais
para pacientes em que se apresente uma dificuldade
para tal, o que frequentemente é feito fora
do centro cirúrgico. Através destes
dois exemplos pode ser visto facilmente que o papel
do cirurgião pediátrico na emergência
não se limita, de forma alguma, a executar
cirurgias sob anestesia geral.
2. O atendimento de crianças portadoras
de doenças cirúrgicas ou sob suspeita
de doenças cirúrgicas, embora possa
ser feito satisfatoriamente de forma complementar
por pediatras em conjunto com cirurgiões
gerais de emergência, não terá
provavelmente a mesma qualidade daquele provido
por um especialista treinado exaustivamente para
o trato com crianças e suas famílias
e para considerar doenças e diagnósticos
diferenciais específicos das várias
faixas de idade. Trata-se de uma questão
de qualidade de atendimento em saúde. E nós,
da CIPERJ, achamos que toda criança merece
a melhor qualidade possível ao ser atendida
por um médico.
3. Embora grandes emergências, que precisem
imperativamente serem tratadas específica
e imediatamente por um especialista possam ser relativamente
incomuns, quando estas situações acontecem
elas são absolutamente críticas. Novamente,
é uma questão de qualidade do atendimento
em saúde.
4. Em medicina, estatísticas devem ser encaradas
com muito cuidado. Uma morte em 1.000.000 de crianças
é excessiva, se esta for evitável.
Uma criança crítica que não
é atendida é um valor absoluto, ainda
que seja a única demanda em um prazo longo.
É claro que compreendemos as necessidades
de gestão, logística e adequação
de recursos, e reconhecemos que o atendimento cirúrgico
em pediatria pode ser focado em centros escolhidos.
Mas solicitamos que o número de centros com
os recursos adequados disponíveis sejam apresentados
em número suficiente para atender às
necessidades da população. Os principais
municípios do Grande Rio (Rio de Janeiro,
São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova
Iguaçu, Belford Roxo e Niterói) têm
em conjunto, segundo o censo do IBGE-2010 (www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?uf=rj),
uma população até 14 anos de
idade de aproximadamente 5,5 milhões de crianças.
Se considerarmos apenas duas doenças cirúrgicas
pediátricas comuns (apendicite aguda e invaginação
intestinal), teremos uma incidência de 0,3%
da população, o que implicaria em
uma necessidade de avaliação e tratamento
cirúrgico por cirurgião pediátrico
de cerca de 16.500 casos/mês (46 casos/dia).
É claro que esta estimativa de demanda é
extremamente conservadora, porque não considera
outras doenças, a necessidade de diagnóstico
diferencial em casos de dor abdominal, avaliação
de trauma e procedimentos cirúrgicos menores.
Neste momento, o Grande Rio dispõe de atendimento
cirúrgico pediátrico emergencial apenas
em sete unidades públicas de saúde
que dispõe de serviço de Pronto Socorro
(Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, Hospital
Estadual Alberto Torres, Hospital Municipal Souza
Aguiar, Hospital Estadual Azevedo Lima, Hospital
Estadual Albert Schweitzer, Hospital Estadual Getúlio
Vargas e Hospital Estadual Rocha Faria), na grande
maioria deles com vários dias de escala sem
cobertura. Em verdade, a única unidade com
efetivo completo é o Hospital Municipal Souza
Aguiar. O Hospital Estadual Azevedo Lima conta com
apenas um cirurgião em seus quadros e os
hospitais estaduais adotaram recentemente a conduta
de não prover cirurgiões plantonistas
nos horários noturnos. Uma grande proporção
destes profissionais é contratada através
de cooperativas, sem estabilidade empregatícia,
com direitos trabalhistas limitados e sem a perspectiva
de carreira profissional progressiva nas instituições,
com implicações evidentes. Acrescentamos
a inexistência de plantonista de Cirurgia
Pediátrica em três hospitais municipais
Miguel Couto, Salgado Filho e Lourenço Jorge.
Estes argumentam bastam para demonstrar a precariedade
que encontramos neste momento para o atendimento
emergencial cirúrgico de crianças
em nosso Estado. Nós, da CIPERJ, reputamos
ser este um problema seríssimo, com implicações
graves para a população, e solicitamos
a reflexão da sociedade, dos gestores, dos
colegas médicos, dos formadores de opinião
e de nossos representantes nos três poderes,
a fim de buscar soluções razoáveis
para o problema, no menor prazo possível.
Diretoria da CIPERJ