Ao ser enviado à Bolívia em 2006,
para o que seria uma ação humanitária,
o médico se viu em meio a uma manobra política,
que visava pregar a ideologia comunista. “A
brigada tinha cerca de 10 paramilitares, que estavam
ali para nos dizer o que fazer”. Velazco não
suportou a servidão forçada e fugiu.
Sua primeira parada foi pedir abrigo político
no Brasil, que permitiu sua estada apenas de maneira
provisória. Hoje, ele mora com a família
em Miami, nos Estados Unidos, onde tem asilo político
e estuda para revalidar seu diploma. De lá,
ele concedeu a seguinte entrevista ao site de VEJA:
Como os médicos são selecionados
para as missões?
Eles são obrigados a participar. Em Cuba,
se é obrigado a tudo, o governo diz até
o que você deve comer e o que estudar. As
brigadas médicas são apenas uma extensão
disso. Se eles precisam de 100 médicos para
uma missão, você precisa estar disponível.
Normalmente, eles faziam uma filtragem ideológica,
selecionavam pessoas alinhadas ao regime. Mas com
tantas colaborações internacionais,
acredito que essa filtragem esteja menos rígida
ou tenha até acabado.
Como foi sua missão?
Fomos enviados 140 médicos para a Bolívia
em 2006. Disseram que íamos ficar no país
por três meses para ajudar a população
após uma enchente. Quando cheguei lá,
fiquei sabendo que não chovia há meses.
Era tudo mentira. Os três meses iniciais viraram
dois anos. O pior de tudo é que o grupo de
140 pessoas não era formado apenas por médicos
- havia pelo menos 10 paramilitares. A chefe da
brigada, por exemplo, não era médica.
Os paramilitares estavam infiltrados para impedir
que a gente fugisse.
Paramilitares?
Vi armas dentro das casas onde eles moravam. Eles
andavam com dinheiro e viviam em mansões,
enquanto nós éramos obrigados a morar
nos hospitais com os pacientes internados. Quando
chegamos a Havana para embarcar para a Bolívia,
assinamos uma lista para registro. Eram 14 listas
com 10 nomes cada. Em uma delas, nenhum dos médicos
pode assinar. Essa era a lista que tinha os nomes
dos paramilitares.
Como era o trabalho dos paramilitares?
Não me esqueço do que a chefe da
brigada disse: “Vocês são guerrilheiros,
não médicos. Não viemos à
Bolívia tratar doenças parasitárias,
vocês são guerrilheiros que vieram
ganhar a luta que Che Guevara não pode terminar”.
Eles nos diziam o que fazer, como nos comportar
e eram os responsáveis por evitar deserções
e impedir que fugíssemos. Na Bolívia,
ela nos disse que deveríamos estudar a catarata.
Estávamos lá, a priori, para a atenção
básica – não para operações
como catarata. Mas tratar a catarata, uma cirurgia
muito simples, tinha um efeito psicológico
no paciente e também na família. Todos
ficariam agradecidos à brigada cubana.
Você foi obrigado a fazer algo que
não quisesse?
Certa vez, eu fui para Santa Cruz para uma reunião,
lá me disseram que eu teria de ficar no telefone,
para atender informações dos médicos
e fazer estatísticas. O objetivo era cadastrar
o número de atendimentos feitos naquele dia.
Alguns médicos ligavam para passar informações,
outros não. Eu precisava falar com todos,
do contrário os líderes saíam
à caça daquele com quem eu não
havia conversado. Quando terminei o relatório,
603 pacientes tinham sido atendidos. Na teoria,
estávamos em 140 médicos na Bolívia,
mas foi divulgado oficialmente que o grupo seria
de 680. Então como poderiam ter sido feitas
apenas 603 consultas? Acabei tendo que alterar os
dados, já que o estabelecido era um mínimo
de 72 atendimentos por médico ao dia. Os
dados foram falsificados.
Como é a formação
de um médico em Cuba?
Muito ruim. É uma graduação
extremamente ideologizada, as aulas são teóricas,
os livros são velhos e desatualizados. Alguns
tinham até páginas perdidas. Aprendi
sobre as doenças na literatura médica,
porque não tinha reativo de glicemia para
fazer um exame, por exemplo. Não dava para
fazer hemograma. A máquina de raio-X só
podia ser usada em casos extremos. Os hospitais
tinham barata, ratos e, às vezes, faltava
até água. Vi diversos pacientes que
só foram medicados porque os parentes mandavam
remédios dos Estados Unidos. Aspirina, por
exemplo, era artigo raro. É triste, mas eu
diria que é uma medicina quase de curandeiro.
Você fala para o paciente que ele deveria
tomar tal remédio. Mas não tem. Aí
você acaba tendo que indicar um chá,
um suco.
Como era feita essa "graduação
extremamente ideologizada" que o senhor menciona?
Tínhamos uma disciplina chamada preparação
militar. Ficávamos duas semanas por ano fora
da universidade para atender a essa demanda. Segundo
o governo cubano, o imperialismo iria atacar a ilha
e tínhamos que nos defender. Assim, estudávamos
tudo sobre bombas químicas, aprendíamos
a atirar com rifle, a fazer maquiagem de guerra
e a nos arrastar no chão. Mas isso não
é algo exclusivo na faculdade de medicina,
são ensinamentos dados até a crianças.
Como é o sistema de saúde
de Cuba?
O país está vivendo uma epidemia
de cólera. Nas últimas décadas
não havia registro dessa doença. Agora,
até a capital Havana está em crise.
A cólera é uma doença típica
da pobreza extrema, ela não é facilmente
transmissível. Isso acontece porque o sistema
público de saúde está deteriorado.
Quase não existem mais médicos em
Cuba, em função das missões.
Por que você resolveu fugir da missão
na Bolívia?
Nasci em Cuba, estudei em Cuba, passei minha vida
na ilha. Minha realidade era: ao me formar médico
eu teria um salário de 25 dólares,
sem permissão para sair do país, tendo
que fazer o que o governo me obrigasse a fazer.
Em Cuba, o paramédico é uma propriedade
do governo. A Bolívia era um país
um pouco mais livre, mas, supostamente, eu tinha
sido enviado para trabalhar por apenas três
meses. Lá, me avisaram que eu teria de ficar
por dois anos. Eu não tinha opção.
Eram pagos 5.000 dólares por médico,
mas eu recebia apenas 100 dólares: 80 em
alimentos que eles me davam e os 20 em dinheiro.
A verdade é que eu nunca fui pago corretamente,
já que médico cubano não pode
ter dinheiro em mãos, se não compra
a fuga. Todas essas condições eram
insustentáveis.
Você pediu asilo no Brasil?
Pedi que o Brasil me ajudasse no refúgio.
Aleguei que faria o Revalida e iria para o Nordeste
trabalhar em regiões pobres, mas a Polícia
Federal disse que não poderia regularizar
minha situação. Consegui um refúgio
temporário, válido de 1 de novembro
de 2006 a 4 de fevereiro de 2007. Nesse meio tempo,
fui à embaixada dos Estados Unidos e fui
aprovado.
Após a sua deserção,
sua família sofreu algum tipo de punição?
Eles foram penalizados e tiveram de ficar três
anos sem poder sair de Cuba. Meus pais nunca receberam
um centavo do governo cubano enquanto estive na
Bolívia, mas sofreram represálias
depois que eu decidi fugir.
Quando você foi enviado à
Bolívia era um recém-formado. A primeira
leva de cubanos no Brasil é composta por
médicos mais experientes...
Pelo o que vivi, sei que isso é tudo uma
montagem de doutrinação. Essas pessoas
são mais velhas porque os jovens como eu
não querem a ditadura. Eu saí de Cuba
e não voltei mais. No caso das pessoas mais
velhas, talvez eles tenham família, marido,
filhos em Cuba. É mais improvável
que optem pela fuga e deixem seus familiares para
trás. Geralmente, são pessoas que
vivem aterrorizadas, que só podem falar com
a imprensa quando autorizadas.
Os médicos cubanos que estão
no Brasil deveriam fazer o Revalida?
Sim. Em Cuba, os médicos têm de passar
por uma revalidação para praticar
a medicina dentro do país. Sou favorável
que os médicos estrangeiros trabalhem no
Brasil, mas eles precisam se adequar à legislação
local. Além do mais, a formação
médica em Cuba está muito crítica.
Eu passei o fim da minha graduação
dentro de um programa especial de emergência.
A ideia era que eles reduzissem em um ano minha
formação, para que eu pudesse ser
enviado à Bolívia. O governo cubano
está fazendo isso: acelerando a graduação
para poder enviar os médicos em missões
ao exterior.