Na
manhã da última quinta-feira, Izabela
assistia a uma aula de cardiologia de forma improvisada,
no pátio da universidade. A derrocada do sonho
de Izabela começou no final de 2011, quando
o grupo Galileo Educacional assumiu a administração
da Gama Filho. Com a promessa de reerguer uma universidade
endividada, os novos gestores demitiram 600 funcionários
e aumentaram o valor das mensalidades – a de
medicina subiu de R$ 2.700 para R$ 3.500 mensais.
O efeito das medidas foi desastroso.
Cresceram a inadimplência e a evasão
de alunos. Professores e funcionários entraram
em greve por atraso nos salários. No início
de agosto, os alunos encontraram um aviso no portão:
a Gama Filho estava fechada e as provas adiadas. O
Ministério da Educação suspendeu
os vestibulares. Desde então, 30 estudantes
ocupam a sala da reitoria. Izabela não sabe
se conseguirá o diploma. Nem ela nem nenhum
dos cerca de 2.100 alunos do curso.
Por 40 anos, os alunos da Gama Filho
tiveram aulas práticas na Santa Casa do Rio
de Janeiro, hospital com mais de 500 leitos. No final
de 2011, a direção da universidade demitiu
140 professores que também eram médicos
do hospital. Seria o fim do ensino prático,
se 40 professores não tivessem decidido trabalhar
de graça para socorrer os alunos. A Gama Filho
ofereceu como alternativa um pequeno hospital de 40
leitos, na Barra da Tijuca. Havia mais alunos de medicina
que pacientes, e o projeto foi abandonado. Hoje, os
alunos têm aulas práticas no hospital
municipal de Piedade. “Nessa crise, por dó,
a prefeitura ainda deixa os alunos estudar no hospital”,
diz a estudante Fernanda Lopes Moreira. Até
2010, antes da crise, o curso de medicina da Gama
Filho tinha nota 3, numa escala que vai de 1 a 5,
no Conceito Preliminar de Curso (CPC) do Ministério
da Educação. Chegou a ser um dos mais
concorridos entre as faculdades privadas do Rio. Se
fosse realizada uma nova avaliação neste
ano, o conceito da Gama Filho certamente despencaria.
A direção da faculdade diz que resolverá
os problemas de caixa até setembro, quando
pretende retomar as aulas.
O caso da Gama Filho é um
exemplo extremo e dramático dos problemas sérios
que envolvem a formação dos médicos
no Brasil. Nas últimas semanas, o país
debate a chegada de profissionais estrangeiros, a
maioria cubanos, para trabalhar em locais distantes,
onde não há profissionais. A solução,
já adotada pelo Brasil no passado e por países
como o Canadá, pode resolver um problema emergencial
de falta de profissionais. Mas escamoteia um problema
maior, estrutural, que se reflete na saúde
pública nacional: a qualidade da formação
dos médicos. “O país não
tem uma formação sólida na graduação
médica”, afirma Mário Scheffer,
professor da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP). “Cada vez mais, as
escolas não formam adequadamente”, afirma
Florentino Cardozo, da Associação Brasileira
de Médicos (AMB). “Os médicos
mais novos dominam muito conteúdo, mas de maneira
trivial. Têm dificuldades em se aprofundar.”
Há uma queda sensível
no nível de conhecimento dos alunos nos últimos
15 anos. A maioria dos especialistas no assunto associa
o problema à proliferação das
escolas. Existem hoje 202 cursos de medicina no Brasil.
A primeira expansão na oferta ocorreu entre
1966 e 1969, quando foram criadas 22 escolas –
só uma era privada. O segundo boom de cursos
ocorreu entre 1996 e 2007, quando foram criadas 77
escolas, 52 delas particulares. A Índia é
o único país com mais escolas de medicina
que o Brasil – são 348. Os Estados Unidos,
um país maior e mais rico que o Brasil, tem
141 escolas. “Houve um crescimento exponencial
das faculdades nos últimos 20 anos, instituições
desprovidas de corpo docente qualificado, a maioria
sem hospital universitário”, afirma o
professor Scheffer. “Isso criou muita desigualdade
entre os cursos de medicina no Brasil.”
A formação em medicina
tem peculiaridades. Os estudantes precisam tanto de
ensino teórico de alto nível quanto
de vasta e intensa experiência prática.
No melhor dos mundos, os professores dão aulas
na classe e atuam como médicos no hospital
da universidade. Isso garante continuidade no ensino.
Essa situação, no entanto, é
cada vez mais rara. Os alunos são obrigados
a buscar a prática em outros locais. “Ensina-se
uma coisa em cada lugar, muitas vezes de maneira antagônica”,
afirma o diretor da Escola Paulista de Medicina, Antonio
Carlos Lopes. Nas universidades públicas, o
maior problema é a falta e o mau estado de
equipamentos. No caso das universidades federais,
só nos últimos três anos os investimentos
em equipamentos foram retomados.
Qualquer curso de medicina precisa
ser aprovado pelo Ministério da Educação
para começar a funcionar. Depois, são
feitas avaliações a cada três
anos. A fiscalização da qualidade é
feita pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (Inep). No caso de medicina, há
hoje 88 avaliadores, professores do ensino superior,
encarregados de cumprir essa missão. As visitas
dos técnicos às faculdades duram até
três dias. A avaliação começa
pela aplicação do Enade, um exame que
mede o conhecimento dos alunos em relação
ao que foi ensinado. Os resultados do Enade são
considerados na composição de um índice
de qualidade chamado Conceito Preliminar de Curso
(CPC). Os indicadores de qualidade levam em conta
aspectos como ensino, pesquisa, atividades extracurriculares,
desempenho dos alunos e gestão. O curso recebe
uma nota que varia de 1 a 5. Aqueles que obtêm
1 e 2 passam por uma supervisão mais rigorosa
e são obrigados a corrigir falhas. Se as melhorias
não forem feitas, é instaurado um processo
administrativo – e os cursos são punidos.
Uma das punições é
a proibição de vestibulares, como aconteceu
com a Universidade Gama Filho. Pode chegar até
à desativação do curso, como
ocorreu no início deste ano na Universidade
Vale do Rio Verde (Unincor), em Belo Horizonte. A
fiscalização constatou na Unincor que
faltavam professores e locais adequados para aulas
práticas, além de haver deficiências
no projeto pedagógico. Trezentos alunos foram
prejudicados com o fim do curso. Na semana passada,
ÉPOCA esteve em quatro universidades públicas
e privadas para conhecer a realidade. Existem as que
têm bons alunos e professores, mas estão
em condições precárias –
a maioria é pública. Há as particulares,
que às vezes têm boas instalações
e equipamentos, mas com alunos e professores abaixo
da média. Outras, por fim, são um desastre
de gestão, como a Gama Filho.
Os problemas
Trezes garotas paramentadas com pijamas
cirúrgicos azul-royal, toucas e máscaras
descartáveis observam, curiosas, os movimentos
precisos do bisturi sem lâmina. A intenção
não é realmente cortar o “doente”,
interpretado pelo monitor da turma. A aula é
de técnica cirúrgica, ministrada pelo
cirurgião de cabeça e pescoço
Orlando Barreto Zocratto, no Instituto Metropolitano
de Ensino Superior (Imes), em Ipatinga, Minas Gerais.
Orlando ensina a fazer a limpeza do local a cortar
e a posição do punho no momento da incisão.
“Tudo isso que eu estou mostrando, vamos refazer
no ambulatório, quando vocês forem para
lá”, diz Orlando. O material brilha.
O laboratório é amplo e arejado. O professor
tem mestrado e doutorado. A infraestrutura garantiu
ao Imes uma de suas maiores notas nas várias
dimensões avaliadas pelos técnicos do
Ministério da Educação. Os dois
prédios da faculdade têm chão
de granito, paredes bem pintadas de verde-claro e
branco, salas com ar condicionado e cadeiras estofadas,
elevadores. Os laboratórios são bem
equipados. O de anatomia tem, entre outras peças,
18 corpos e 500 cérebros – quase um para
cada um dos 600 alunos. O de habilidades médicas
tem um manequim, carinhosamente chamado de Juan, que
é possível entubar, desfibrilar e cuja
pressão arterial pode ser aferida. Custou R$
80 mil. A faculdade tem um ambulatório a 10
quilômetros dali, em Coronel Fabriciano, onde
alunos e professores fazem atendimento gratuito.
Apesar de tudo isso, o Imes recebeu
nota 2 no CPC, considerada insuficiente pelo Ministério
da Educação, nas avaliações
realizadas em 2007 e em 2010. As melhores notas do
Imes nas avaliações do MEC vieram da
infraestrutura. Mas, no Exame Nacional de Desempenho
dos Estudantes (Enade), o Imes se complicou. No primeiro,
em 2004, a faculdade formava sua primeira turma de
11 médicos. A nota no Enade foi 5, a máxima,
e o Imes se colocou entre as poucas escolas particulares
do país a atingir esse patamar. Três
anos depois, os alunos tiraram 2. Mais três
anos, e outro 2. A reputação do Imes
despencou. A escola chegou a reformular seu currículo.
“Não importa o que você faça
internamente, o que fica para quem está fora
é esse número”, diz Eric Bassetti
Soares, coordenador do curso de medicina. Hoje, dos
99 professores do Imes, apenas 29,8% são doutores
e 37,6% mestres. O processo de seleção
do corpo docente é pela indicação,
pelo currículo e por uma aula-teste que o candidato
ministra.
Fazer um médico largar um
consultório para encarar a sala de aula não
costuma ser fácil, e as escolas particulares
têm bons salários a oferecer. No Imes,
um professor pode ganhar até R$ 18 mil por
mês, valor impensável numa universidade
pública, onde o mais graduado professor ganha
cerca de R$ 10 mil mensais. Só que os discípulos
também não são de ponta. “Ninguém
escolhe primeiro uma faculdade particular”,
diz Orlando. “O aluno daqui é o que não
conseguiu passar na federal.” A estudante Mabelly
Correa, de 20 anos, queria ser engenheira química.
Desistiu no cursinho preparatório. Mudou para
medicina, preencheu fichas de inscrições
em várias federais, mas não passou.
Optou por superar o preconceito que tinha com as faculdades
privadas. Passou em 27o lugar em Ipatinga. Enfrentou
uma concorrência de 28 alunos por vaga, que
a faculdade só vê aumentar. “A
prova foi muito difícil, não achei que
fosse passar”, diz Mabelly. Ainda com esse perfil,
os alunos que entram no Imes têm notas superiores
à média brasileira no Enade. Num curso
exigente como o de medicina, esse bom desempenho inicial
às vezes não significa tanto.
A Universidade do Oeste de Santa
Catarina (Unoesc), na cidade de Joaçaba, abriu
seu curso de medicina em 2004. Como no caso de Ipatinga,
a faculdade impressiona pela qualidade das instalações.
O curso oferece 60 vagas por semestre, e a primeira
turma se formou no ano de 2010, quando o MEC reconheceu
o curso. Desde então, 183 médicos se
formaram. Em 2010, o curso recebeu nota 2 na avaliação
do CPC do Ministério da Educação.
Ficou entre os piores da Região Sul. Uma das
razões da nota ruim foi a baixa quantidade
de professores com mestrado e doutorado. A faculdade
tem dificuldade em atrair profissionais qualificados
para uma cidade a 400 quilômetros de Florianópolis.
“Sabemos que não somos nota 2”,
afirma o diretor de graduação da universidade,
Ricardo Menezes. “Isso não reflete a
realidade do que somos.” Após a emissão
da nota pelo MEC, uma comissão estadual visitou
a faculdade e atribuiu nota 4, próxima do conceito
máximo.
O goiano Luiz Fernando Meireles,
de 30 anos, está no último semestre
de residência médica em urologia no Hospital
Universitário de Brasília (HUB), ligado
à Universidade de Brasília (UnB). “Há
aqui médicos com especialização
em Harvard, Oxford. Eles estudam demais e são
bons mestres”, diz Luiz. “Tenho certeza
de que não passariam vergonha se comparados
com profissionais de qualquer lugar do mundo.”
A empolgação cessa quando Luiz começa
a falar da estrutura do hospital. A maior parte dos
equipamentos está tão sucateada que
alguns procedimentos não podem ser feitos.
Isso interfere no aprendizado de Luiz e no atendimento
dos pacientes. Luiz diz que gostaria de realizar mais
cistectomias, uma cirurgia complexa, que consiste
na retirada da bexiga de um paciente para a confecção
de uma nova. Ele diz não poder realizar uma
cirurgia dessas porque a UTI está fechada para
novos pacientes. “Existem três pessoas
na fila de espera da cistectomia, mas, sem a UTI,
não é possível”, diz Luiz.
“Temos de avisar aos pacientes para procurar
outro hospital.”
Como faltam profissionais, o próprio
Luiz tem de esterilizar os materiais que usa e, às
vezes, gastar seu próprio dinheiro para garantir
o funcionamento de alguns equipamentos. Luiz é
um dos três últimos médicos residentes
que moram nas instalações do HUB. Seu
quarto, com menos de 15 metros quadrados, fica no
2º andar do pequeno prédio da administração,
castigado pelo tempo e por infiltrações.
“As condições de moradia não
são as melhores. Mas estou no hospital”,
diz Luiz. “É uma pena que os novos residentes
não tenham acesso a essa oportunidade que tenho.
Se tivesse de pagar aluguel, estaria em dificuldades.”
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