tribunalfonte: O Globo

O Ministério Público exigiu que o município do Rio convoque profissionais de saúde concursados. A 2ª Promotoria de Justiça da Tutela Coletiva da Saúde ajuizou ação civil pública com pedido de liminar para que contratados temporariamente sejam substituídos por aprovados em concurso. Segundo o MP, a medida visa à regularização da política de recursos humanos na área de saúde da cidade e o suprimento de, no mínimo, 544 cargos vagos em 11 hospitais.

Na ação, assinada pelas promotoras Patricia Brito e Sousa e Madalena Junqueira Ayres, por meio das investigações de diversos inquéritos civis, ficou constatado que o município realizou diversas contratações irregulares temporárias para preenchimento de cargos nos seguintes hospitais: Souza Aguiar, Salgado Filho, Francisco da Silva Telles, Álvaro Ramos, Barata Ribeiro, Lourenço Jorge, Miguel Couto, Paulino Werneck, Hospital Municipal da Piedade, Raphael de Paula Souza e Rocha Maia.

No documento, as promotoras argumentam que as contratações feitas por meio de cooperativas ou outras entidades desrespeitam a norma constitucional. “Ao se analisar a atuação, ao longo dos anos da administração pública municipal no contexto da gerência de recursos humanos, constata-se o descumprimento das diretrizes estampadas na Constituição Federal e na Constituição Estadual, e, em última análise, o distanciamento do alcance efetivo dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, notadamente os princípios da universalidade, integralidade e equidade”, ressalta trecho da ação.

Também foram apresentadas ao juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública tabelas que indicam que o número de contratos temporários muitas vezes é maior do que as convocações de aprovados em concurso. Além disso, mostram que o número de vagas abertas na Secretaria Municipal de Saúde em edital não corresponde à real necessidade da rede municipal saúde.

O Ministério Público requer a condenação do município a regularizar a situação em até 60 dias e que seja aberto, em até 120 dias, novo concurso público, caso o número de profissionais aprovados não seja suficiente para preencher os cargos vagos.

A Procuradoria Geral do Município informou que ainda não foi notificada sobre esse processo.

O vereador Carlos Eduardo (SDD), presidente da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores, corrobora com a ação do MP. Na semana passada, ele concluiu um levantamento qua aponta falta de recursos humanos nas unidades de saúde da rede municipal. Segundo Carlos Eduardo, o número de médicos deveria dobrar nos quatro maiores hospitais de emergência do município (Lourenço Jorge, na Barra; Souza Aguiar, no Centro; Miguel Couto, no Leblon; e Salgado Filho, no Méier): de 1.147 para 2.372 profissionais. As especialidades mais críticas, diz ele, são: clínica geral, ortopedia, pediatria, cirurgia geral, intensivista e anestesia.

MENOS DA METADE DOS CLÍNICOS GERAIS NO SOUZA AGUIAR

Clínico geral é o especialista que mais falta nos quatro hospitais: 207 no total. De acordo com o levantamento, o Souza Aguiar deveria ter 124 profissionais, e tem 48; o Lourenço Jorge 61, e conta com 14; o Miguel Couto 54, e trabalha com 15; e o Salgado Filho, que teria que aumentar de 20 para 65 o número de clínicos gerais.

A falta de anestesistas aparece no estudo do vereador como a segunda maior deficiência na rede municipal de saúde, além de ser considerada uma das principais causas de atrasos nas cirurgias eletivas das quatro unidades. Hoje, o Miguel Couto tem 31 anestesistas, e o ideal seriam 74; o Souza Aguiar deveria subir de 25 para 56; o Salgado Filho aumentar de 28 para 35; e o Lourenço Jorge, de 36 para 61.

— Juntos, esses hospitais precisam de 226 anestesistas. O déficit que existe atualmente (106) provoca atrasos de, no mínimo, 14 dias nas cirurgias eletivas. Essa demora pode ser fatal — alerta o vereador.

O vereador solicitará ao Ministério Público a abertura de inquérito civil público para apurar responsabilidades. Ele alega que para calcular as necessidade de cada unidade levou em consideração as séries históricas dos atendimentos, os leitos e a legislação do Ministério da Saúde e do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj).

— Foram dois meses de um trabalho muito minucioso. O levantamento mostra que há déficit em todas as especialidades. A situação da saúde no município está crítica — disse Carlos Eduardo.

A manipuladora de farmácia Josimar Ranchel sentiu na pele não só a deficiência de profissionais como o que considerou um jogo de empurra no Souza Aguiar. Há 20 dias, ela fraturou o braço e perdeu a manhã inteira para engessá-lo. Apesar da demora, conseguiu o atendimento. Mas uma guia de encaminhamento incompleta acabou fazendo com que a paciente tivesse de retornar três vezes ao hospital:

— O médico me deu uma guia para eu ir a um posto de saúde retirar o gesso. Só que ele não preencheu tudo. Então, voltei ao hospital duas vezes, para tentar atendimento com outro ortopedista, mas não consegui. Na terceira tentativa, procurei a assistente social, que preencheu o documento. Espero que resolva. Estou muito preocupada, porque tenho que voltar ao trabalho — contou Josimar.

A pesquisa de Carlos Eduardo aponta um déficit de 135 ortopedistas nos quatro hospitais, sendo: 55 no Souza Aguiar (tem dez); 44 no Lourenço Jorge (tem nove); 21 no Miguel Couto (tem 38); e 15 no Salgado Filho (tem 35).

Na área de pediatria, o cenário não é muito diferente. O Miguel Couto tem 48 especialistas, e deveria ter 63; o Salgado Filho tem 32, e precisa de 45; o Souza Aguiar tem 22, e necessita de 64; e o Lourenço Jorge tem 24, e deveria ter 37.

DÉFICIT TAMBÉM DE ENFERMEIROS

O levantamento apontou, ainda, a carência de outros profissionais de saúde. Segundo o vereador, devido à falta de enfermeiros e fisioterapeutas, o Miguel Couto, por exemplo, mantém dois leitos de CTI fechados. A pesquisa indica que no hospital trabalham 135 enfermeiros e sete fisioterapeutas, mas são necessários 334 e 65 profissionais, respectivamente, para atender à demanda.

— Considero crime um hospital como o Miguel Couto estar com dois leitos de CTI fechados. Hoje, os quatro grandes hospitais municipais têm apenas 570 enfermeiros, e precisariam de 1.324. Há um déficit enorme de fisioterapeutas também: são apenas 45, e a demanda exige, pelo menos, 241 — ressalta Carlos Eduardo.

Com fortes dores, provocadas por uma crise renal, a comerciante Delana Schaid precisou buscar atendimento médico de emergência, na semana passada. Acompanhada do marido, Eliseu Vieira, acabou na fila do Hospital Municipal Souza Aguiar. Depois de passar quase 12 horas na unidade, na última quarta-feira, saiu de lá apenas medicada. A tomografia, considerada necessária pelo médico, segundo o casal, não pôde ser realizada. A recomendação foi para que o casal retornasse no dia seguinte. Mas de nada adiantou a espera.

— Como demoraram a atender minha mulher, não foi possível fazer a tomografia no mesmo dia. O exame só é realizado até as 17h. Também não permitiram que ela passasse a noite no hospital. Fomos para casa, em Guadalupe, depois das 23h. Às 8h de quinta-feira, já estávamos de volta no Souza Aguiar. Foram dois dias sem poder trabalhar. E, o pior: minha mulher não conseguiu fazer a tomografia. Informaram que temos que buscar atendimento no Hospital do Fundão, onde ela operou o rim, em 2011 — lamentou Vieira.

O estudo aponta também a falta de técnicos em tomografia: cada um dos quatro hospitais tem, no máximo, um técnico, quando precisaria de pelo menos três.

— O Lourenço Jorge não faz tomografia aos domingos. Isso é inconcebível — destaca o vereador.

De uma forma mais abrangente, o levantamento indica que para atender aos quatro grandes hospitais, além de sete maternidades, o Hospital Municipal Jesus, o Instituto de Geriatria e as unidades de saúde mental, o número de profissionais na rede municipal deveria subir de 10.733 para 20.221.

— A saúde hoje opera com a metade do contingente. É inadmissível, por exemplo, que uma maternidade como a Alexander Fleming, em Marechal Hermes, tenha cinco leitos de UTI neo natal fechados. E a Fernando Magalhães, em São Cristóvão, tenha cinco leitos de UTI materna fechados também — contabiliza Carlos Eduardo.

‘RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE NÃO EXISTE MAIS’

O Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro corrobora com a denúncia. Segundo a entidade, a ausência de uma política de recursos humanos é a principal causa do desequilíbrio de profissionais nas unidades. Salários baixos, falta de condições de trabalho e valorização da mão de obra terceirizada estão provocando uma alta rotatividade nos hospitais.

— A relação médico/paciente não existe mais. Cada dia o paciente é atendido por um médico diferente. Ninguém quer trabalhar em condições ruins, e ainda ganhando pouco — avalia o presidente do Sindicato dos Médicos, Jorge Darzi.

Em nota, a Secretaria municipal de Saúde (SMS) informou que desconhece a metodologia usada pelo vereador e que, diferentemente do que ele afirma, os quatro grandes hospitais da rede têm 1.535 médicos, dos quais 84,8% são servidores públicos. A SMS reforça que, na atual gestão, dois concursos foram realizados para médicos e outros profissionais de saúde, em 2011 e 2013. Porém reconhece que há dificuldade de lotação em algumas especialidades. Segundo a SMS, um novo concurso para a contratação de médicos está previsto, mas ainda não tem data estabelecida.

De acordo com a SMS, no Lourenço Jorge e no Miguel Couto há faltas pontuais, respectivamente, de técnicos de radiologia e de técnicos de enfermagem, que serão supridas com a contratação de profissionais. Quanto à denúncia do vereador de que dois leitos da UTI do Miguel Couto estão fechados, a SMS alegou que “enquanto corre o processo para a convocação dos técnicos de enfermagem, a direção do hospital aproveita para realizar reparos que se faziam necessários na UTI e para os quais seria preciso desocupar os dois leitos.”

Sobre a realização das cirurgias eletivas, a secretaria informou que vários fatores são determinantes para o tempo de espera, em especial, o grande volume de casos cirúrgicos prioritários e de emergência nas unidades da rede municipal.

Em nota, a direção do Hospital municipal Souza Aguiar informa que Delana Schaid foi atendida na unidade, avaliada pelo médico urologista, submetida a exames que descartaram infecção e constataram função renal normal. Não havia indicação clínica para exame de tomografia ou outros procedimentos mais complexos. Foi medicada e liberada, com orientação de dar continuidade ao acompanhamento ambulatorial em unidade ambulatorial especializada.