fonte: Editorial de O Globo

Com apenas um médico por grupos de mil habitantes, o Brasil tem inegável déficit de profissionais. A relação das Américas, aí incluídos os EUA, é de 2,2/1.000; na Europa, a média é de 3,3. No Rio de Janeiro, um dos três estados do país com maior número de faculdades de Medicina, quase 30% das cidades têm menos de um profissional para cada mil cidadãos, segundo levantamento do GLOBO. São indicadores preocupantes, que reclamam políticas apropriadas para melhorar a relação entre oferta e demanda — mas nunca uma licença para pedaladas que, longe de resolver, maquiem o problema.

Mudar essa relação, uma imperiosidade, embute um risco concreto. Na busca pela melhoria dos índices médicos/população, meta explícita do programa Mais Médicos, evidencia-se o incentivo ao surgimento de faculdades de Medicina sem condições de formar profissionais com qualificações mínimas para prestar bons serviços.

Quando importou médicos cubanos para suprir deficiências no atendimento em localidades mais vulneráveis, o governo atacou o problema de forma tópica. Foi medida emergencial. Mas, no caso da formação profissional, a questão passa para o terreno das políticas estratégicas. A meta do Ministério da Saúde é que o Brasil alcance até 2026 a relação 2,7 médicos/mil habitantes, e para isso está rodando o software Mais Médicos. A preocupação é justa, mas os movimentos até agora são inquietantes, pois apontam para o risco concreto de se estar criando, no âmbito do preparo dos estudantes, mera linha de montagem para efeitos estatísticos.

Levantamento do Conselho Federal de Medicina adverte para esse risco. Desde 2003, a quantidade de cursos particulares voltados para a formação desse segmento profissional mais que dobrou no país em relação aos estabelecimentos públicos de ensino superior — uma tendência que se acentuou nos anos de gestão da presidente Dilma. Em apenas cinco anos, foram concedidas 79 autorizações para abertura de novas escolas. O CFM faz uma preocupante comparação: entre 1808 e 1994 foram abertos apenas 82 estabelecimentos de ensino desse tipo.

Mesmo levando em conta o caráter em geral corporativista do Conselho, são números a serem analisados com responsabilidade. Até porque uma radiografia da localização desses novos cursos evidencia que não se está atacando a demanda de fundo (aumentar o número de profissionais, por óbvio qualificados, em áreas mais carentes). A distribuição de autorizações prioriza estados (São Paulo, Minas e Rio, principalmente) onde a cobertura à população está mais bem encaminhada.

Fica evidente que a multiplicação dos cursos de Medicina não resolve, por si, o problema. É preciso incrementar não a oferta de atendimento médico, mas também garantir a qualificação profissional. Caso contrário, ainda que o Ministério alcance a meta estabelecida, corre-se o risco de se chegar a ela sem que a carência de bons serviços tenha sido equacionada de fato.