fonte: O Globo

Há três semanas, médicos conveniados ao plano de saúde Amil, o maior do país em número de beneficiários, receberam uma planilha com orientações sobre os materiais a serem usados em cirurgias de fraturas de perna, joelho, fêmur e quadril. As tabelas indicam que materiais de menor preço devem ser usados nos pacientes com planos mais econômicos, numa discriminação por tipo de contrato do usuário. A prática, vedada pela regulação de planos de saúde, foi condenada por associações médicas. A planilha divide materiais cirúrgicos como placas, parafusos e lâminas em quatro cores: verde, amarelo, bege e vermelho. A legenda diz o seguinte: “Verde tem o melhor preço e éo nosso alvo. Planos até 400 têm de estar sempre no verde. Planos de 500 para cima devem, preferencialmente, estar no verde.” A Amil tem como prática comercial usar números para designar diferentes planos oferecidos aos beneficiários. Via de regra, quanto maior o número, melhor é a cobertura e mais cara a mensalidade.

ANS: INDICAÇÃO É DO MÉDICO

Ao lado da legenda, na tabela, uma escala sinaliza que produtos na categoria “amarelo” são até 10% mais caros que os verdes; os “bege”, até 20%; os “vermelhos”, acima de 20%. Para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão federal regulador do setor, a prática infringe a legislação. Em nota, a agência ressalta que a decisão sobre o material “deve respeitar a indicação clínica feita pelo médico responsável pelo paciente”.

Em 2017, a ANS editou a Resolução 424 com normas para a tomada de decisão nesses casos. “Cabe ao profissional a prerrogativa de determinar as características (tipo, matéria-prima e dimensões) das órteses, das próteses e dos materiais especiais”, destaca a agência. No momento de planejar uma cirurgia, o protocolo da ANS prevê que o médico deve oferecer ao menos três opções de materiais ao plano de saúde. A operadora pode escolher um deles ou instaurar uma junta médica se discordar das escolhas dos médicos. Segundo cirurgiões ouvidos sob sigilo, a planilha da Amil é uma inversão dessa lógica e, por isso, burla a regulação. A multa pelo descumprimento do protocolo pode chegar a R$ 250 mil, por caso, “quando a conduta for tipificada como negativa de cobertura ao paciente”, diz a agência reguladora. A planilha cita fabricantes com qualidade reconhecida pelos médicos. O receio é que a prática abra um precedente para a inclusão de produtos de qualidade duvidosa ou que não atendam às técnicas adotadas por cirurgiões brasileiros no futuro. Além disso, causa estranheza aos médicos a discriminação de materiais pela capacidade financeira do paciente, tema de um debate ético entre os profissionais de saúde e especialistas em defesa do consumidor. — Essa prática contraria a legislação brasileira de planos de saúde —diz a advogada Maria Stella Gregori, diretora do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), e que foi da diretoria do Procon-SP nos anos 90. Carlos Alfredo Lobo Jasmin, diretor da Associação Médica Brasileira (AMB), vai além e adianta que encaminhará denuncia sobre a prática à ANS: — Isto é ilegal e imoral. Os planos não podem diferenciar a qualidade dos materiais segundo o plano do paciente. O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem desde 2010 uma norma sobre o assunto. Em resumo, o protocolo diz que “cabe ao médico determinar as características (tipo, matéria-prima, dimensões) das órteses, próteses e materiais especiais implantáveis” numa cirurgia. O CFM lembra que os médicos não podem exigir “fornecedor ou marca comercial exclusivos”. A medida visa coibir a “máfia das próteses”, tema de uma reportagem do programa Fantástico (TV Globo) de janeiro de 2015. Na época, a reportagem mostrou que cirurgiões estavam recebendo propinas de fabricantes de materiais médicos em troca da indicação desses materiais aos pacientes. A prática criminosa previa até a realização de cirurgias sem necessidade. O caso motivou a criação de um padrão para cirurgias no Sistema Único de Saúde (SUS). E, na saúde suplementar, aumentou a desconfiança entre gestores dos planos e médicos na tomada de decisão sobre os materiais. Além disso, endureceu o controle por parte das operadoras sobre as decisões tomadas pelos médicos. Para fontes que receberam a planilha, esse contexto pode estar por trás da decisão da Amil de enviar o documento aos profissionais. A empresa, no entanto, não comentou os motivos para o envio da planilha.

AMIL DIZ QUE É SÓ SUGESTÃO

Procurado para comentar o caso na última quinta-feira, o UnitedHealth Group Brasil, empresa de gestão de saúde suplementar controladora da Amil desde 2012, enviou no dia seguinte uma nota em que disse trabalhar “em estreita colaboração com prestadores de serviços médicos e especialistas para sugerir protocolos de tratamento com base em evidências médicas internacionais”. A planilha, diz a empresa, é uma sugestão aos médicos “como opções para o tratamento de seus pacientes, abrangendo todos os níveis de plano de saúde”. Segundo a United Health, os profissionais credenciados, portanto, “são encorajados a usar produtos que forneçam a melhor qualidade com os menores preços em um esforço para que os custos de saúde sejam viáveis”.

Por ora, a ANS disse não ter recebido reclamações pela prática. Procurada, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz não ter conhecimento do envio de “guias de utilização de órteses, próteses e materiais especiais” pelas operadoras. Procurada, a segunda operadora do país, de acordo com ranking da ANS, a Bradesco Saúde disse não adotar a prática. A Hapvida, terceira maior do setor, não quis comentar o caso.

“Isto é ilegal e imoral. Os planos não podem diferenciar a qualidade dos materiais segundo o plano do paciente”, afirma Carlos Alfredo Lobo Jasmin, diretor da Associação Médica Brasileira (AMB).