fonte: O Globo

Covid-19 e suas causas, padrões de relacionamento entre humanos, uso de recursos naturais, mudanças climáticas e as consequências da quarentena sobre a economia persistem ocupando lugar central na cena mundial. O Brasil, após quatro meses do primeiro óbito, tem 2,7% da população mundial e 10% das mortes. Desproporção que poderia ter sido evitada se o que foi dito, repetido e evidenciado na planície pela Ciência subsidiasse as políticas decididas pelas autoridades no Planalto. Para infortúnio do país, as recomendações de segurança, isolamento e proteção social foram preteridas. É verdade que saúde pública e negócios nunca se bicaram. Saúde da população exige saneamento, ruas iluminadas com calçadas largas e arborizadas, moradias amplas e ventiladas, controle de poluição, acesso a boa nutrição, controle de peso, exercícios físicos e repúdio ao racismo.

Processos empresariais produzem valor e retornos monetários para indivíduos. Alimentos que causam obesidade, produção de danos ambientais e atividades comerciais e industriais que acentuam desigualdades reduzem as chances de viver mais e bem.

Na fase inicial da pandemia, houve troca de bicadas. Frigoríficos que expuseram trabalhadores ao ar rarefeito empacotando carne se converteram em “covidários”. Empresários sugeriram que os profissionais de saúde pública estavam “politizando” a doença e não conseguiam responder a interrogações sobre o planejamento para o futuro da economia. Depois de experiências malsucedidas de reabertura de atividades, sem critérios sanitários, novas ondas de disseminação e mais mortes evitáveis, os tradicionais adversários se aproximaram. Grandes grupos empresariais contrataram especialistas em saúde pública e anunciaram disposição para ampliar o espectro de ações de segurança para trabalhadores e clientes.

Companhias aéreas terão que convencer os passageiros de que as viagens serão seguras. Voos demorados, no “novo normal”, talvez fiquem ainda menos prazerosos do que aqueles espremidos nos assentos da classe econômica. Bagagens de mão e refeições tendem a ser proibidas, e não poderá haver filas de espera em banheiros, que disseminam germes.

Negócios e saúde pública não se beijaram, mas agora compartilham problemas comuns. O setor biofarmacêutico passou a declarar que tem desafios para além da produção de novas vacinas e tratamentos; terá que resolver em conjunto com governos e organizações sem fins lucrativos como propiciar acesso para todos. Consórcios envolvidos com a produção da vacina para Covid-19 anunciam que estão olhando para fora da janela. A velha equação — inovação, risco, patentes e altos retornos financeiros — inclui a perspectiva regulatória que antecipa controle de eficácia, compras, preços e responsabilidade por efeitos adversos. Em maio, o Fórum Econômico Mundial constatou que, para a maioria da população (dois terços), “governos devem salvar o maior número de vidas possível, mesmo que isso signifique que a economia se recuperará mais lentamente”, e registrou alteração nos escores de credibilidade institucional. A confiança na saúde pública é maior do que nas empresas.

Saúde pública é uma ciência do anonimato, salva e preserva milhares de vidas sem que se saiba quem são os profissionais por trás das ações de prevenção e as pessoas beneficiadas. O enfoque populacional tem sido pouco atraente para políticos e doadores, sensíveis a indivíduos com nome e sobrenome doentes e necessidades tangíveis de hospitais e unidades de saúde. O súbito e possivelmente duradouro estrelato — em função de ameaças de outras patologias infecciosas e possibilidades de intervenção sobre doenças crônicas — é promissor. Temos muitos estudantes que precisarão de emprego estável. Mas é preciso advertir que somos confiáveis porque buscamos fundamentos na Ciência. Nossas reflexões autônomas quase sempre desagradam, não atendem solicitações para legitimar atalhos particulares. Manter distância e usar máscara não é autorização para reabrir shopping centers, pelo contrário.

A saúde pública brasileira tem sido incansável nas tentativas para evitar mortes por Covid-19. Mas não conseguimos convencer o estado-maior do governo de que um general ministro da Saúde, responsável pelo elevado número de mortes na epidemia, passará para a história mais como Pétain do que como Montgomery.