fonte: Folha de SP

Deslocados para atuar na linha de frente no tratamento ao novo coronavírus, médicos residentes deixaram de lado o aprendizado prático da sua área de especialização para tratar apenas dos doentes por Covid-19. Agora, eles temem que o tempo dedicado ao combate à pandemia prejudique a formação, já que o período pode não ser reposto.

É o caso de Sérgio Duarte, 29, que faz residência em urologia no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Ele foi deslocado para atuar na enfermaria e, desde março, calcula que teve uma redução de cerca de 70% nas atividades que deveria realizar originalmente. A previsão de voltar à normalidade é setembro.

“Minha especialidade tinha cerca de 10 a 15 cirurgias por dia e atualmente estamos tendo 3 a 4 no máximo, só de urgência. Isso gerou um acúmulo de pacientes aguardando e prejudicou a nossa formação como especialistas”, diz ele.

No HC, um dos hospitais de referência no tratamento da Covid-19 no estado com maior número de casos e vítimas do país, foi feita uma força-tarefa e todos os residentes foram mobilizados direta ou indiretamente para atuar no enfrentamento da pandemia.

A mudança prejudicou com mais força algumas áreas, como ginecologia, pediatria, cirurgia e oftalmologia, por exemplo.

Agora, com a redução de casos na capital paulista, o complexo hospitalar ligado à USP [Universidade de São Paulo] começa a se desmobilizar. E a posição do hospital, segundo os médicos residentes, é de que o período não será reposto. A próxima formatura é em fevereiro de 2021.

A residência é uma modalidade de pós-graduação, sob a forma de curso de especialização em instituições de saúde, costumam ter duração de dois ou três anos, são remuneradas com uma bolsa paga pelo Ministério da Saúde ou pelas secretarias estaduais da Saúde e conferem o título de especialista aos médicos.

“Sempre nos colocamos à disposição para ajudar nesse momento sem precendentes. É nosso papel como médico. Mas isso não pode servir de desculpa para não termos a formação adequada”, afirma Duarte, que se contaminou com o novo coronavírus no fim de abril.

Ao menos 214 médicos residentes do HC se infectaram, o que corresponde a 12,5% do total de 1.700. Alguns chegaram a ser internados na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), mas não houve mortes.

Para Renata Mencacci, 25, que coordena a Associação de Médicos Residentes da USP, o Hospital das Clínicas foi o mais afetado do estado com o aumento de pacientes e a necessidade de redistribuição de tarefas, mas profissionais de outros hospitais pelo país devem sentir o mesmo impacto nos próximos meses.

“Pedimos que estendessem o prazo da formatura. Isso envolveria adiar a entrada de novos residentes e garantir a extensão da bolsa. A resposta que recebemos é de que fariam no máximo uma reposição voluntária. Mas esse é o nosso trabalho, nós precisamos do dinheiro”, afirma Mencacci, que deveria ter feito nos últimos meses gastrocirurgias, cirúrgias de cabeça e pescoço e plásticas. Não fez.

“Me deixa preocupada saber que agora eu vou ter uma formação prejudicada, que esses procedimentos serão feitos de forma deficitária, por um tempo encurtado. Isso vai ter repercussão no meu futuro e, em consequência, para o sistema de saúde. Vou ser uma média pior”, diz ela.

No início de junho, a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), órgão do Ministério da Educação que decide as diretrizes sobre o tema para todo o país, divulgou uma nota onde afirma que os programas de residência, “antes planejados para acontecer em etapas anuais e executado em rodízios ou estágios, necessitará de flexibilidade na estrutura do programa para se adequar à realidade sócio-sanitário do momento”.

A reposição de atividades não desenvolvidas por conta da pandemia, segue o documento, “uma vez retomada a normalidade, será objeto de análise e decisão posterior pela CNRM”.

Informalmente, no entanto, a comissão indicou que não deve haver reposição, com todos os programas sendo concluídos no fim de fevereiro de 2021. O residente que se sentir prejudicado poderia até repor o período, mas como voluntário.

“Há uma letargia do Ministério da Educação, que não define nada sobre o assunto. Isso gera insegurança entre os gestores públicos e entre os médicos”, diz Arthur Sapia, presidente da Associação dos Médicos Residentes do Estado de São Paulo e secretário-geral da Associação Nacional dos Médicos Residentes.

No estado, segundo Sapia, metade dos residentes dizem sentir necessidade de repor o período. “É heterogêneo, algumas áreas não precisam. Mas imagina um neurocirurgião que perdeu cinco meses da sua formação? A maior prejudicada é a própria população”, afirma.

Tanto o Ministério da Educação quanto o Ministério da Saúde vivem momentos de instabilidade na gestão, com troca de titulares pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em meio à pandemia, a pasta da Saúde já teve três ministros e o MEC, dois. O último deixou o cargo antes mesmo da cerimônia de posse.