fonte: O Globo

Médica em Manaus, a jovem Anne Menezes estava exausta física e psicologicamente. “Eu estava 12 horas de plantão, e eu não percebi o tempo passar. Quando eu me dei conta, já eram 5 da manhã, eu não tinha tomado água, eu não tinha ido ao banheiro, eu não tinha jantado. E já tinha realizado uma série de procedimentos, incluindo entubações nos pacientes”. Casos assim confirmam o que se constatou numa pesquisa feita pela internet entre 26 de junho e 6 de julho pela PEBMED, organização que produz conteúdos feitos por médicos para auxiliar o profissional na hora da tomada de decisão clínica. Segundo o levantamento feito com 3.613 profissionais, 83% daqueles que estavam na linha de frente do combate à Covid-19 declararam sintomas da Síndrome de Burnout, mais conhecida como síndrome do esgotamento profissional. O dado foi revelado em uma reportagem da edição deste domingo, dia 6, do “Fantástico”, da TV Globo.

Para Juliana Freitas, enfermeira em Sergipe, os sintomas do problema ficaram mais evidentes no momento em que ela fazia o atendimento de uma criança acidentada. “Ela sofreu um traumatismo craniano, foi atropelada, e simplesmente eu parei. Eu não sabia o que fazer. O pessoal falava comigo, entrava num ouvido, saía no outro. Eu tenho sete anos de urgência-emergência. E nunca houve nenhum tipo de… episódio como esse”, lembra Juliana. Ela conta que passou cinco meses sem ver a filha. “A gente passou cinco meses praticamente, quatro meses, sem eu ter nenhum tipo de contato com minha menina. Por medo de realmente de transmitir, porque ela é asmática e eu tinha medo que ela pegasse o Covid. Graças a Deus ela não teve, ela ficou o tempo todo com minha mãe, distante de mim. Aí teve essa questão do afastamento. E… muito difícil, muito difícil”, diz Juliana, que trabalha numa unidade de pronto-atendimento em Boquim, a 80 quilômetros de  Aracaju, e também em hospital público da capital.

Segundo Eduardo Moura, médico co-fundador da PEBMED, organização que produz conteúdos feitos por médicos para médicos para auxiliar o profissional de saúde na hora da tomada de decisão clínica, um questionário foi enviado por e-mail para a base de profissionais de saúde da instituição. Foram por volta de 100 mil envios.  O burnout é comum na área de saúde, mas, mesmo assim, 83% chama muito a atenção. “O  burnout é uma coisa relacionada ao estresse vocacional. Uma coisa ligada ao ambiente de trabalho. É sempre ligada à perda de perspectivas, perdas de paixão, cinismo. Uma perda do otimismo da pessoa, principalmente fadiga de empatia e de compaixão”, explica Márcio Bernik, psiquiatra coordenador do ambulatório de ansiedade do Hospital das Clínica de São Paulo.

Segundo o psiquiatra, o aumento de transtorno mental não é limitado aos profissionais de saúde. Mas esses foram particularmente impactados pela questão da doença. Considerando o total da pesquisa, incluindo os profissionais que estão e os que não estão na linha de frente, a Síndrome de Burnout apareceu em 79% dos médicos; 74% dos enfermeiros; e 64% dos técnicos em enfermagem. Em relação à faixa etária, quanto mais jovem o profissional, maior a chance de esgotamento. Até 40 anos, 82% dos pesquisados reclamaram de burnout, enquanto o número cai para 67% para profissionais com mais de 40 anos.  “São profissionais que ainda acabam não sabendo lidar da mesma maneira do que os mais experientes”, afirma Eduardo Moura.

Em hospitais públicos, os números dessa exaustão são mais altos do que nos particulares: 79% (públicos) e 74% (privados). Piores condições de trabalho, falta de insumos hospitalares, disponibilidade de pessoas e de profissionais também se mostrou como algo relevante e que favorece burnout. Sobre gênero, a síndrome aparece mais em mulheres: 73% (homens) e 80% (mulheres).

“Comecei com distúrbios gastrointestinais,  tremendo mãos, pés. Sentia pânico. Tava me sentindo muito mais segura em minha casa do que no lugar onde eu tava trabalhando. Fui afastada agora dia 26 de agosto, por dois meses. Por um esgotamento. Esgotamento profissional, deficit de concentração, de memória, excesso de trabalho, sobrecarga”, conta a enfermeira Juliana Freitas. “Tô com acompanhamento com psiquiatra. Agora vou começar uma terapia com psicólogo pra poder tentar realmente sair dessa fase, sair disso tudo. E voltar à minha vida normal”, acrescenta a enfermeira.

Em Manaus, a doutora Anne, de 27 anos, que mora com a mãe, faz o segundo ano da residência. Os números e a curva de casos da cidade sugerem que a pandemia já passou, mas a rotina da médica segue pesada. “Continuamos recebendo pacientes muito graves, principalmente vindos do interior do estado, mas também da capital. A gente até comenta, será que tá acontecendo tudo de novo?”, questiona Anne.  Há duas semanas, ela relata a situação de estresse que viveu. ” Não parava de chegar paciente. A gente contabilizou nesse dia sete entubações. Meu plantão começou sete da manhã.
Por volta de 7 da noite, eu precisei me retirar, ir ao banheiro chorar, porque aquilo tudo tinha mexido muito comigo. Eram senhoras jovens, senhores jovens, na faixa dos 50, 60 anos e me veio a lembrança na cabeça da minha mãe, do meu pai, e aquilo tudo foi muito desgastante naquele momento. Fui ao banheiro, chorei tudo o que precisava chorar. Passou uns 10 minutos, me recuperei. E voltei porque ainda tinham mais 12 horas de plantão”, relembra.

Para o pesquisador,  essa pesquisa deveria ser encarada como um grito de socorro dos profissionais de saúde. “Porque o perfil de quem respondeu a nossa pesquisa é principalmente do profissional de linha de frente, do profissional do SUS, do profissional que tá submetido a uma carga de trabalho aumentada, com poucos recursos. E tendo que atender a uma demanda cada vez maior”, afirma Eduardo.

A médica Anne também precisou entrar de licença, assim como a enfermeira Juliana. “Eu precisei me ausentar, para me recuperar e poder ajudar os colegas de novo”, disse. De volta aos plantões, ela está se tratando. O repórter pergunta se, como uma residente, que ainda nem terminou a residência, ter passado por tudo isso deu uma baqueada em relação à carreira médica, ou tá mais convicta ainda? Annde diz: “Não. Cada dia que passa, eu tenho certeza que eu estou no caminho certo. A gente fazendo com amor… a gente consegue respirar e continuar”.