fonte: VEJA
Um dos principais problemas da saúde brasileira é a indefinição das regras que regulam seus serviços. A frouxidão das normas em relação a contratos, pagamentos ou responsabilidades pelos serviços de saúde colabora para a má gestão dos recursos, que se perdem em um labirinto de programas e projetos. Pouco integrada, a rede é feita de iniciativas que morrem à míngua, com contratos malfeitos, pouco fiscalizados, e composta de equipes que se modificam de quatro em quatro anos.
Para combater essas dificuldades, países ao redor do mundo investem em boas iniciativas e ideias que garantam a administração adequada do dinheiro dedicado aos programas de saúde. Afinal, dilemas como os brasileiros são os principais problemas de saúde pública em todo o globo. Há diferentes modelos, que vão desde países em que os serviços de saúde são totalmente privados, como os Estados Unidos; passando pelo modelo europeu de serviços particulares financiados pelo governo, a exemplo da Holanda, Inglaterra ou França; ou totalmente públicos, como Espanha e Finlândia. Entretanto, descontadas as diferenças, há uma clara e antiga indefinição de regras de saúde gerais a serem seguidas no Brasil, que colaboram com a descontinuidade dos programas e os transformam em um grande ralo de dinheiro.
“Na Europa, que conta com serviços de saúde bastante avançados, há regras muito claras sobre a regulação dos sistemas, feitas para todos, a partir de um comprador, que é o Estado. Há contratos detalhados e que são fiscalizados. Tudo isso no Brasil ainda é muito precário”, diz o médico Gustavo Ferreira Gusso, professor de clínica médica da Universidade de São Paulo (USP). “O caminho é o governo comprar mais serviços privados, mas regular seu uso e estabelecer normas precisas, como acontece na Inglaterra ou Canadá.”
Continuidade — Para oferecer serviços de saúde de qualidade, os países costumam investir em três frentes fundamentais: uma rede integrada de atendimento familiar e comunitário, gestão rígida de contratos e bases de dados informatizadas. “Nosso modelo de saúde, criado há quase trinta anos, está em implantação até hoje. Entre as diferentes iniciativas, a mais básica e essencial é ter uma rede de informações universal com as condições clínicas anteriores do paciente que possa ser usada pelos profissionais para prevenir doenças e criar tratamentos melhores”, diz o médico Gonzalo Vecina Neto, superintendente do Hospital Sírio-libanês, em São Paulo.
Entretanto, programas assim, alerta Vecina Neto, são desenvolvidos durante décadas, e dependem da continuidade do investimento político, financeiro e social para funcionarem. “Voltamos sempre a discutir elementos muito básicos, como alguns procedimentos ou permissões, superados há muito tempo em outros países. E isso nos impede de avançar no que é realmente necessário”, diz o médico.
Uma das causas é a relação estreita que existe no país entre os programas de saúde e seu viés político ou partidário — assim que a gestão termina, o projeto de saúde também deixa de receber investimentos. “Temos excelentes programas de saúde brasileiros, inspirados nos melhores exemplos do exterior e feitos de acordo com a nossa realidade. No entanto, eles param no meio do caminho e não superam nem os primeiros desafios”, diz Maria Fátima Souza, diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB). “É preciso que a saúde se torne, de uma vez por todas, uma política de Estado e não só de governo.”
Com o apoio dos especialistas, o site de VEJA mapeou seis boas iniciativas em saúde pública ao redor do mundo que atacaram o problema da gestão de recursos. Exemplos de investimento e fôlego são, mais que modelos de administração em saúde, excelentes opções de atendimento para seus pacientes:
Redução de custos de pacientes crônicos (EUA)
Em 2002, o médico Jeffrey Brenner analisou os dados dos hospitais da cidade de Camden, em New Jersey, e percebeu que 1% dos pacientes era responsável por 30% das despesas de saúde locais — eram os pacientes mais pobres e com doenças crônicas. Para diminuir os custos e melhorar o atendimento, fez reuniões com assistentes sociais, enfermeiros e médicos para acompanhar esses pacientes e criar uma estratégia integrada que evitasse a reincidência no sistema. Dessas reuniões surgiu o Camden Coalition of Healthcare Providers, um grupo que analisa os dados de hospitalizações da cidade e acompanha os pacientes de maior risco, com visitas em casa e atenção familiar e comunitária. O programa se expandiu para cinco cidades do país, integrando os profissionais de saúde, que fazem uma supervisão sistemática dos pacientes e de suas famílias, diminuindo os atendimentos em hospitais em cerca de 40% e reduzindo os custos pela metade.
Consórcio de hospitais (Espanha)
Na região espanhola da Catalunha, os hospitais são organizados em consórcios desde 1986. São unidades públicas e privadas que oferecem internações e tratamentos especializados (cardiologia, oftalmologia, obstetrícia) integrados à rede de saúde básica. Os consórcios públicos respondem por 73% dos centros de referência e 84% dos leitos, e os privados atendem o restante. Se, ao passar pela rede básica, o paciente precisar de tratamentos especializados, ele será encaminhado diretamente para o hospital que faz parte do consórcio da sua região — seja ele público ou privado. Consórcios como o Sanitari de Barcelona negociam anualmente os objetivos que serão alcançados, a remuneração por eles, e estabelecem um minucioso contrato — monitorado e fiscalizado por organizações sociais. Com o atendimento integrado, os hospitais reduziram filas e demoras no atendimento aos pacientes.
Sistemas de informação (Reino Unido)
Uma parte fundamental dos sistemas de saúde de países como Espanha, Suécia, Noruega ou Reino Unido é a reunião e integração das informações de cada paciente, em um perfil com seu histórico de saúde. Essa ficha, informatizada, disponibiliza aos profissionais de saúde exames, diagnósticos, internações e médicos responsáveis pelos pacientes — dados que ajudam em futuros tratamentos. No Reino Unido, essas informações — acessadas em qualquer lugar do país por meio do nome ou número do paciente — são compiladas pelo Centro de Informações em Saúde e Atenção Social (Health and Social Care Information Centre — HSCIC) e estão passando por uma reformulação em 2014. O objetivo é melhorar a quantidade dos dados para prevenir doenças e diminuir a desigualdade dos atendimentos.
Mobile Health (EUA)
O projeto americano da agência americana Usaid começou em 2009 a implantar tecnologias de celular e internet wireless para melhorar os atendimentos de saúde em países da África e Ásia. Computadores e telefones são usados de maneira integrada para recolher dados de saúde, tirar dúvidas, fazer pagamentos, enviar informações com maior rapidez, além de lembrar os pacientes das consultas por mensagens de texto, enviar resultados de exames ou facilitar a comunicação com os profissionais de saúde. Mais de 500 organizações em 77 países fazem parte do projeto que, em cinco anos, fortaleceu os sistemas de saúde africanos e asiáticos. Em alguns países, as consultas perdidas e desistências de tratamentos caíram de 30% para 4%, os nascimentos em unidades de saúde subiram para 55%, e o comparecimento a visitas pré-natais aumentou para 66%.
Saúde da Família (Canadá)
A atenção primária, o nome dado à integração entre profissionais de saúde para o acompanhamento de famílias e comunidades, é o ponto mais desenvolvido do sistema de saúde canadense. No fim dos anos 1970, uma experiência de cuidados de saúde da família no Sault Ste Marie Group Health Centre melhorou os índices de tratamentos de diabetes e doenças cardíacas e diminuiu os retornos de pacientes com insuficiência cardíaca ao hospital em 44% em dois anos. Em 2000, o governo destinou 800 milhões de dólares para a reforma do programa. Entre as metas, linhas de telefones disponíveis 24h para o atendimento, a formação de organizações e grupos de cuidado integral e a melhora do atendimento de doentes crônicos. O grande diferencial é que, no Canadá, os novos médicos têm uma formação que integra várias áreas da saúde e os orienta para o atendimento comunitário e familiar — ao contrário do Brasil, em que os profissionais são especialistas em apenas uma área. Além disso, há um médico que centraliza e se torna o responsável por todos os procedimentos de saúde do paciente — conhecido em outros países como concierge doctor ou personal doctor.
Cuidados paliativos (Espanha)
Na Espanha, país em que a população chega à idade média de 80 anos, a medicina paliativa, nome dado aos cuidados oferecidos a doentes terminais para diminuir seu sofrimento, desenvolveu-se bastante desde os anos 1990. Em 2012, o governo espanhol em colaboração com a Organização Mundial de Saúde (OMS) criou uma inciativa para identificar pacientes com necessidade de cuidados paliativos e oferecer tratamento pelo sistema de saúde público na região da Catalunha. ChamadaNecpal (Programa de Necessidades Paliativas), a ferramenta identifica o doente e o encaminha aos serviços de saúde disponíveis – hospitais, serviços de enfermagem, casas de repouso ou acompanhantes que os ajudem com os tratamentos e remédios.