fonte: Istoé
O último exame para a obtenção do registro médico do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) reprovou 55% dos candidatos. Os estudantes erraram diagnósticos considerados simples, como pneumonia. O presidente do Conselho Federal de Medicina, Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, atribui esse resultado ruim à má qualidade dos cursos, agravada pela abertura acelerada de novas escolas médicas no País nos últimos anos.
“Escolas médicas estão sendo autorizadas a abrir de forma desordenada. O Brasil tem mais cursos do que a China e os EUA”
“São instituições sem a qualificação necessária para o ensino médico”, diz ele. “Um estudante que não é avaliado minimamente coloca em risco a vida dos pacientes.” O Brasil possui hoje 247 instituições públicas e privadas, que oferecem anualmente 22 mil vagas, número superior ao de países como China e Estados Unidos. Para Lima, os estudantes deveriam ser avaliados ao longo do curso, de dois em dois anos. Nesse sentido, o CFM criou, em parceria com a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), uma espécie de selo de qualidade para as escolas bem avaliadas pelas entidades.
“No Brasil, no setor privado, o trabalho de parto não é coberto pelas operadoras e não é pago com o mínimo de dignidade”
Istoé – A que atribui o fato de 55% dos estudantes não terem acertado o mínimo exigido pelo exame do Cremesp?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Esses exames refletem a abertura de escolas sem qualificação. A consequência disso é um profissional que sai sem os requisitos básicos para uma profissão que lida com valores absolutos de saúde. Isso precisa ser entendido dentro de uma perspectiva de qualificação do ensino. O exame não é obrigatório para a inscrição do médico no Conselho Regional, mas o resultado deixa claro que há deficiências no ensino de muitas escolas. O índice de reprovação exacerbado está relacionado à qualidade do ensino ofertado.
Istoé – Alguns estudantes erraram questões básicas, como diagnóstico de pneumonia em bebês. Um paciente atendido por um médico com essa formação corre riscos?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Patologias como essas precisam ter diagnósticos. Há casos complexos nos quais é possível aceitar uma dificuldade diagnóstica. Mas isso não é a regra geral. A regra é que um quadro pode e deve ser diagnosticado por um médico com relativa facilidade. Um estudante que não é avaliado minimamente e pratica a medicina está colocando em risco a vida dos pacientes.
Istoé – Como diminuir os índices de reprovação no exame, que desde 2007 estão acima dos 40%?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – É necessário investimento na qualidade do ensino e controle das escolas médicas. A lei do “Mais Médicos” prevê avaliação dos estudantes do segundo, do quarto e do sexto anos. Além do progresso do aluno, analisa-se a qualidade da instituição. Se os estudantes não têm resultados positivos, a escola deveria sofrer sanções e as vagas deveriam ser reduzidas. Mas para melhorar a formação precisamos ter professores com capacidade pedagógica, com cursos de mestrado e doutorado, e infraestrutura. As escolas precisam ter campo de prática suficiente com hospitais próprios ou conveniados. Mas as escolas médicas estão sendo autorizadas a abrir de forma desordenada, sem a segurança necessária para o seu funcionamento. Hoje, o Brasil tem mais cursos do que a China e os EUA. São oferecidas 21.816 vagas por ano para novos estudantes no Brasil. Nos EUA, são 17.364 vagas.
Istoé – Por que as instituições particulares, que cobram mensalidades elevadas, apresentam índice ainda maior de reprovação, de 65%?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Ao contrário das escolas públicas, mais antigas e com um corpo docente articulado, as privadas são mais recentes. De 2010 a 2014, 36 cursos privados foram autorizados a abrir. Há um objetivo de lucro em detrimento do ensino. Estamos lutando contra a abertura das escolas por não terem condições básicas de ensino. É preciso corrigir as distorções que existem antes de lançar novos cursos.
Istoé – Mas a demanda é grande, tanto que mais de quatro mil brasileiros foram para outros países estudar medicina.
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Por um lado, o preço das mensalidades não é acessível a grande parte dos jovens. Existem cursos de péssima qualidade, com mensalidade de R$ 6 mil. Por outro, quem não consegue entrar em instituições públicas vai para cursos fora do País, que são verdadeiras arapucas. Nas escolas de fronteiras, os estudantes brasileiros também têm um ensino de péssima qualidade, muito pior do que as particulares daqui. São instituições destinadas a fazer comércio. Temos visto um aumento de escolas médicas para satisfazer o mercado, porque são cursos lucrativos.
Istoé – E nas escolas públicas, o que precisa ser feito para melhorar a qualidade do ensino?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Elas precisam de mais investimentos. Os hospitais universitários precisam ser mais bem equipados. Agora foi criada uma empresa pública para cuidar desses hospitais, que estavam abandonados. Não se pode simplesmente transformá-los em hospitais de assistência. É preciso valorizar os corpos docentes, que são muito mal pagos. Não pode haver a preocupação com a assistência em detrimento do ensino que o hospital oferta.
Istoé – O número de escolas de medicina com avaliação insuficiente pelo MEC também cresceu. Quais são as deficiências dessas instituições?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – As escolas são autorizadas a funcionar com pendências que não são resolvidas. Os cursos são criados mesmo sem hospital conveniado, insumos e materiais de laboratório. O MEC tem que visitar essas escolas, mas muitas vezes os primeiros cursos terminam, o aluno recebe o diploma e a avaliação não é feita. Há uma liberalidade indevida. Espera-se que as escolas cumpram as solicitações exigidas, mas muitas deixam de cumprir e não há novas exigências. E não ouvimos falar em escolas fechadas por deficiência de ensino. Cerca de 20% das escolas de medicina no País deveriam ser fechadas. As correções são sempre postergadas.
Istoé – Especialidades como oncologia e cardiologia têm alta procura, ao contrário de carreiras como pediatria e medicina da família. Como despertar o interesse por elas?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Isso passa por uma valorização dessas áreas. É preciso oferecer ao médico condições de trabalho e carreiras de Estado, como existe no meio jurídico. Essa tendência existe pela desvalorização das áreas básicas, que são esquecidas pelo governo. Há muitos profissionais que gostam de trabalhar na clínica médica, mas as áreas de maior complexidade remuneram melhor e oferecem melhores perspectivas socioeconômicas. O caminho seria a abertura de concursos públicos e valorização profissional. Enxergar as condições de trabalho é fundamental para entender a falta de interesse dos médicos pela carreira pública no Brasil.
Istoé – No início, o CFM era contrário ao programa “Mais Médicos”, como o avalia agora?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – O programa trouxe médicos estrangeiros sem a revalidação dos diplomas e ao mesmo tempo não se fez nenhum investimento mais eficaz na saúde. Foi deixado de fora um plano de carreira para os médicos e não se investiu em condições adequadas de trabalho para os profissionais nacionais. Temos uma preocupação com a qualidade desses médicos que vêm de cursos com uma carga extremamente reduzida, muito aquém do necessário. Um paciente que não tem nenhum médico naturalmente se sente mais acolhido com alguém dando atenção. Mas os indicadores de saúde é que vão dizer se isso trouxe algum resultado.
Istoé – Mas uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que 95% da população está satisfeita com o “Mais Médicos”. O sr. não acha que ele ajudou a melhorar o acesso à saúde?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – A população certamente não aprovaria menos médicos. Há uma satisfação por ter alguém por perto para dar atenção. Ao mesmo tempo nos preocupamos porque o programa perpetua problemas que poderiam ser resolvidos de forma planejada, com investimento de médio e longo prazos. Não se corrigem distorções na saúde com medidas heroicas.
Istoé – Recentemente o governo criou medidas para estimular o parto normal. Qual é a posição do CFM sobre isso?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – A taxa de cesáreas recomendada pela OMS é de 15% . Mas pouquíssimas nações atingem essa porcentagem. Em países como a França, há número suficiente de médicos, obstetras e enfermeiras para atender à demanda que chega aos hospitais. No Brasil, no setor privado, o trabalho de parto não é coberto pelas operadoras e não é pago com o mínimo de dignidade. O CFM possui uma resolução que obriga toda maternidade a ter uma equipe de médicos de plantão para o atendimento do parto. Se a gestante quer fazer o parto com o profissional que fez o pré-natal, ela deve estabelecer isso contratualmente com ele. Hoje, o maior ressarcimento das operadoras de saúde ao SUS é com o parto porque não há credenciamento de leitos nas maternidades particulares. Os hospitais particulares não se interessam em aumentar as vagas nas maternidades — há um déficit de mais três mil leitos.
Istoé – O Brasil vai conseguir reduzir o número de cesarianas?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Ter uma equipe médica em número suficiente é fundamental. Há uma demanda imensa de gestantes para pouquíssimos profissionais de plantão. Um médico atende hoje entre 10 e 15 gestantes ao mesmo tempo. Por isso, a evolução dos trabalhos de parto não é acompanhada da forma adequada.
Istoé – Mas as propostas esbarram na disponibilidade dos médicos para realizar partos longos. Os médicos também têm culpa pelo número de cesáreas?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – A causa é multifatorial. Pode existir um profissional que queria fazer o parto de forma intempestiva, que queria evitar um tempo maior. Outro ponto fundamental é que existe preconceito das gestantes com o parto normal pela questão da dor, do trauma. Elas preferem fazer a cesárea.
Istoé – Maternidades estão sendo fechadas por não gerarem lucro. Como fica a função social dos hospitais?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – É a mesma situação das escolas privadas. Muitas são boas, mas muitas não têm condições de ensino e estão gerando lucro. O hospital é uma entidade de função pública, mas precisa dar remuneração. O que não pode ocorrer é a geração de lucro em detrimento das funções públicas. Não posso crucificar os empresários dos hospitais dizendo que são irresponsáveis, porque eles atuam dentro de uma lógica de mercado. Às vezes os hospitais têm prejuízos insustentáveis. Trata-se de um contexto de gestão que o hospital tem que equacionar. A Agência Nacional de Saúde precisa disciplinar esse processo.
Istoé – O número de leitos do SUS vem caindo. O governo deveria repensar o modelo de financiamento?
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – De 2010 a 2014, o SUS perdeu 13 mil leitos. Os sistemas que se propõem a serem únicos no mundo têm pelo menos 70% do gasto sanitário total bancado pelo Estado. No Brasil, esse valor é de 45,7%. Na França, esse percentual é de 76,8%. Há que se ter mais investimento no SUS. Mas, antes disso, queremos que o recurso disponível seja bem gasto. Nos últimos dez anos, tivemos R$ 112 bilhões disponíveis e não utilizados. Esse valor é maior do que o orçamento de um ano do SUS. É necessário competência administrativa e acabar com a corrupção. Também precisamos ter 10% da receita bruta da União para a saúde, mas hoje isso me parece impossível.