Quando a porta da velha enfermaria se abre, em vez de pacientes, o que se pode ver são escombros e, a alguns passos, um precipício de nove andares. Já faz mais de quatro anos que a ala sul do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, conhecida como “perna seca”, no Fundão, foi implodida. Mas, até hoje, a área que fazia a ligação da parte do prédio que ficou de pé com a outra posta abaixo não foi recuperada. Assim, os corredores continuam terminando no abismo. Todos os setores próximos a essa área foram desativados. Com isso, a unidade perdeu 25% de sua capacidade. Situação que só aumentou a penúria de um hospital referência no tratamento de doenças de alta complexidade e de excelência no ensino de 12 cursos de graduação da UFRJ, além de pós-graduações e residência médica. Desde que foi inaugurado, em 1978, o hospital sofre com a falta de investimentos, que o levou a ter hoje apenas 230 leitos ativos num gigante de 15 andares e 110 mil metros quadrados, criado para oferecer dois mil leitos. A meta hoje seria ter pelo menos 800 pessoas internadas. Mas falta quase tudo e sobram problemas para todos os lados.
A precária infraestrutura pode ser constatada logo na entrada para os ambulatórios, no térreo, onde há uma área interditada porque o reboco do teto está caindo. A rede hidráulica velha causa transtornos quase diários, a ponto de, semana passada, leitos do CTI terem sido fechados devido a um vazamento. A rede elétrica também é defasada. Escadas rolantes para o subsolo estão paradas há anos. E, desde que o hospital foi aberto, todo o sexto andar e partes do sétimo e do oitavo permanecem desocupadas. O sexto andar virou um cemitério de sucatas hospitalares.
DIREÇÃO PEDE SOCORRO
Diretor da unidade, o professor Eduardo Côrtes calcula que, para deixar o hospital em pleno funcionamento, seriam necessários investimentos de R$ 160 milhões, sendo R$ 6 milhões para recuperar a área junto ao prédio implodido. Ele lembra que, quando construído, o hospital deveria comportar quase dois mil leitos (incluindo a “perna seca”). Mas o Hospital do Fundão nunca operou com toda sua capacidade. No passado, chegou a ter 500 leitos. Hoje, se atendesse a todas as normas técnicas em vigor, teria condições de internar 800 pacientes. Ou seja, mais de três vezes os leitos atualmente disponíveis.
Só com a implosão, em dezembro de 2010, foram fechados 17 leitos de CTI e 140 em enfermarias, 35 apenas na 9D, que tinha sido reformada no início dos anos 2000 e onde, agora, a porta no fundo do corredor se abre para o precipício.
— Nunca poderiam ter implodido uma ala do prédio e largado assim. Isso impossibilitou os setores “D” de todos os andares. Dá vontade de chorar ao ver essas enfermarias vazias. Isso no Rio, com uma fila de centenas de pessoas aguardando atendimento e cirurgias, e na UFRJ, a maior universidade federal do país. Esse hospital, da maneira como está, se tornou uma dívida social, científica e intelectual do governo federal com a cidade — afirma o professor.
Côrtes ressalta que o auge da crise ocorreu após a implosão. Mas ele ressalta que, até chegar a essa situação, a agonia do hospital se prolongou por anos, com recursos de aproximadamente R$ 4 milhões por mês que o diretor diz não serem suficientes para a manutenção do prédio.
— Nos anos 1980, o hospital passou a receber verbas apenas dos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sem um orçamento próprio. Assim, a unidade atingiu uma situação de absoluta ineficiência predial e de pessoal — diz o professor, lembrando que o Hospital do Fundão, como uma instituição universitária, é vinculado ao Ministério da Educação (MEC).
As consequências desse abandono já se refletem no ensino. A Faculdade de Medicina, que nos anos 1990 costumava ficar no topo do ranking do MEC, na primeira ou na segunda posição, despencou para o 14º lugar. O que, segundo a direção do hospital, sofre influência direta da redução do número de leitos. Os 230 atuais são considerados abaixo do recomendado para os cerca de 200 alunos que ingressam anualmente na universidade. É pouco mais de um leito por aluno, enquanto as boas escolas de medicina do mundo oferecem quatro leitos hospitalares para cada estudante que inicia a graduação.
O caos teria piorado com o contingenciamento dos recursos da União. Ano passado, aponta Côrtes, foram enviados ao hospital R$ 7,5 milhões pelo Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (Rehuf). Chegaram a ser licitadas obras como a reforma do telhado, as ampliações do CTI e do setor de fisioterapia e melhorias nos banheiros dos ambulatórios. A verba, no entanto, teria sido cancelada pela União.
Algumas intervenções emergenciais, diz ele, ocorrem com os recursos da própria unidade e da UFRJ. No 10º andar, a enfermaria 10B, com 28 leitos, está em reforma, com um investimento de R$ 1 milhão. No 11º andar, as obras de outra enfermaria estão quase prontas. O teto sobre o setor de medicina nuclear está sendo impermeabilizado. E quatro novos leitos de CTI serão abertos em breve.
— Essas áreas são exemplos do que poderia ser a unidade, bem diferente do hospital que mais parece estar em Damasco em vários de seus setores — diz o professor, em referência à capital da Síria, país em guerra no Oriente Médio.
Apesar desse estado, o diretor de engenharia da unidade, Jairo Villas Boas, afirma que o prédio continua “altamente viável” como uma unidade hospitalar. Ele lembra que a construção, concebida ainda na década de 1940, tem corredores largos e bem iluminados, numa concepção arquitetônica inspirada nos hospitais americanos da primeira metade do século XX. E, por isso, uma reforma ainda seria uma solução melhor do que a construção de um novo prédio, como já chegou a ser defendido em gestões anteriores.
GESTÃO POLÊMICA
Já o MEC afirma que são, sim, repassados recursos para a manutenção e obras na unidade. Por se tratar de um hospital universitário federal, diz o ministério, recebe recursos do Rehuf. Em 2014, teriam sido empenhadas despesas no valor de R$ 11,6 milhões do Ministério da Saúde e de R$ 10, 5 milhões do MEC para o hospital. Este último valor, porém, não teria sido executado, considerando que a instituição não teria solicitado limite para empenho (autorização de gasto) dentro do prazo estabelecido pelo MEC.
O ministério atribui parte da situação ao fato de a UFRJ não ter aderido à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), criada em 2010 para gerir os hospitais universitários. A direção do hospital argumenta que, se aderisse à Ebserh, a unidade poderia perder sua autonomia de ensino. O que é contestado pela presidente em exercício da empresa, Jeanne Michel. Segundo ela, dos 50 hospitais universitários federais do país, 30 estão sob a gestão da Ebserh e outros dez estão em processo de adesão. Dos dez que restam, oito pertencem à UFRJ, entre eles o Hospital do Fundão.
— Não interferimos no ensino e na linha de pesquisa da universidade. A empresa pública foi criada como uma ferramenta do MEC para oferecer um mecanismo de melhoria da gestão dos hospitais, com pessoal qualificado e trabalhando com controle de escalas e ponto, por exemplo. Já temos bons resultados em outras unidades. Fizemos concurso, com dez mil contratados em toda a rede — diz ela.
Mas para o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), médico e membro da Comissão de Saúde da Câmara, o hospital vem sendo castigado pelo MEC porque não aceitou entregar a sua gestão à empresa pública:
— O problema é que o MEC não repassa recursos suficientes. Com isso, o ministério prejudica a população e o ensino.
A opção pela implosão da “perna seca”, em 2010, ocorreu devido a um abalo na construção, depois que quatro colunas cederam. Na época, técnicos concluíram que uma reforma custaria mais do que a derrubada do prédio.