fonte: O Globo
Numa terça-feira de setembro do ano passado, o aposentado Sérgio Vieira Fortes ficou incrédulo diante do diagnóstico. O que ele imaginava ser uma forte alergia era, na verdade, um câncer na laringe. Saiu da consulta em um hospital público do Distrito Federal com a orientação de retirar o tumor maligno o mais rápido possível. Mas, passados mais de sete meses, o homem de 60 anos continua à espera de um tratamento.
O total de cadastrados no Siscan representa menos de 5% dos 576 mil novos casos que o Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima por ano no Brasil. A lentidão na implantação do sistema, que é a ferramenta para fiscalizar a lei dos 60 dias, é criticada pela mastologista Maira Caleffi, presidente voluntária da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama). Ela considera “grave” o desrespeito ao prazo estabelecido em lei de dois anos atrás.
— No universo monitorado, ter praticamente metade dos pacientes atendidos depois dos 60 dias é grave. O prognóstico pode piorar muito com a demora no tratamento. O tempo implica, no caso de alguns cânceres, em curar ou não curar — diz a médica.
‘É UM DESÂNIMO MUITO GRANDE QUE DÁ’
Com a voz enfraquecida pelo câncer na laringe, Sérgio conta da peregrinação, desde setembro, por hospitais públicos do DF. Ele chegou a pagar, em clínicas particulares, por exames necessários para a cirurgia, que foi marcada e depois cancelada no SUS. Os custos pesaram no orçamento do aposentado e da mulher, Sebastiana, que trabalha como diarista. Sem perspectiva de conseguir o tratamento, Sérgio pensou em desistir:
— Eu não queria fazer mais nada, disse que era para a gente deixar isso pra lá, já tenho 60 anos mesmo. É um desânimo muito grande que dá — lembra Sérgio.
Sebastiana não deixou o marido esmorecer. No início deste ano, eles entraram na Justiça para conseguir o tratamento, que, segundo as avaliações médicas mais recentes, deverá começar com a combinação de quimioterapia e radioterapia, e não mais cirurgia. Em fevereiro, uma decisão judicial determinou que a assistência fosse providenciada, mas a primeira sessão para tomar os medicamentos na veia foi marcada para 12 de maio.
— Nós que não temos dinheiro só podemos contar mesmo com Deus. Como é que demoram tanto tempo para tratar um tumor maligno numa pessoa? A gente não sabe se está piorando — diz Sebastiana.
Diretor do Núcleo de Saúde da Defensoria Pública do DF, que atende demandas de pacientes sem atendimento que querem acionar a Justiça, Celestino Chupel acredita que a lei dos 60 dias moralizou “um pouco” a oferta do tratamento de câncer no Brasil. No entanto, ele ressalta que determinados casos tendem a sofrer mais com a demora, como quando são necessários especialistas específicos, como oncologistas que tratam de tumores localizados na cabeça e pescoço.
Estudante de psicologia, Vanessa Rodrigues de Oliveira foi classificada pela médica como “a exceção da exceção da exceção”. Com 26 anos, sem casos na família e sem fazer uso de pílula anticoncepcional, associada ao risco de câncer de mama, ela foi surpreendida pela doença. Do diagnóstico definitivo, recebido em outubro de 2014, até a cirurgia de retirada do seio direito, feita no Rio Grande do Sul, foram quatro meses e nove dias. Agora, Vanessa encara as sessões de quimioterapia.
— A espera é muito angustiante. Se a demora é muito longa, atrapalha o tratamento, não só porque o lado psicológico diminui a sua imunidade, autoestima, podendo fazer a doença se alastrar, mas porque abala a própria saúde mental — afirma a jovem.
DIFICULDADE PARA ALIMENTAR O SISTEM
Patricia Schieiri, coordenadora do departamento de doenças crônicas do Ministério da Saúde, afirma que é “difícil analisar” por que 43% dos 12.130 pacientes que conseguiram atendimento, entre os mais de 25 mil cadastrados no Siscan, tiveram o prazo de 60 dias extrapolado. Ela reconhece que os problemas passam pela falta de acesso ao tratamento, mas destaca também possíveis dificuldades dos hospitais para alimentar o Siscan.
Pelos dados do sistema, há 13.032 pacientes sem atendimento. Desse universo, não é possível precisar quantos, de acordo com Patricia, ainda estão dentro do prazo de 60 dias. Ela destaca dificuldades de infraestrutura e de acesso à internet dos hospitais como entraves para agilizar a implantação do Siscan. Apesar de presente em 4.814 municípios, o sistema não cobre todas as unidades de saúde que fazem atendimento oncológico nessas cidades.
Dez unidades da Federação, por exemplo, já têm, em alguns hospitais e laboratórios, o Siscan instalado, mas ainda não fazem o monitoramento para saber se o prazo de 60 dias está sendo cumprido. Toda a região Norte, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e o DF estão nessa situação, segundo o Ministério da Saúde. A pasta discute um prazo para universalizar o Siscan, mas não há data definida, de acordo com Patricia.