fonte: O Globo
Há cerca de cinco anos, o Hospital Universitário Santa Terezinha, em Joaçaba (SC), recebeu um paciente que era testemunha de Jeová. Ele tinha de passar por uma cirurgia em que poderia perder sangue. Mas, por motivos religiosos, a família se opôs à possibilidade de recorrer à transfusão. Os familiares chegaram a conversar com o presidente do comitê de bioética do hospital, mas decidiram não fazer a cirurgia e tranferiram o paciente para outro local.
Comitês de bioética, como o do hospital de Joaçaba, ligado à Universidade do Oeste de Santa Catarina, ainda são uma raridade no Brasil, mas podem ganhar um novo impulso. É o que pretende o Conselho Federal de Medicina (CFM), que lançou uma recomendação para que os hospitais os instalem. Esses órgãos são diferentes das comissões éticas que avaliam a conduta profissional do médico. Os comitês de bioética tratam de questões morais relacionadas ao atendimento dos pacientes. Podem ser acionados, por exemplo, quando há a possibilidade de interromper o tratamento de um paciente em estado terminal. Ou quando o paciente manifestou vontade de doar seus órgãos, mas a família se opõe.
Elcio Luiz Bonamigo, presidente do comitê de bioética do Hospital Universitário Santa Terezinha e integrante da Câmara de Bioética do CFM, explica que esses comitês não têm o poder de impor uma decisão. A palavra final é do paciente ou do médico que o atende. Também evitam dar respostas em que o paciente só possa dizer sim ou não àquilo que é oferecido pelo hospital. O ideal, diz ele, é procurar um caminho alternativo.
Diferentemente das comissões de ética, os comitês de bioética não são compostos apenas por médicos. Na sua recomendação, o CFM estimula que profissionais de outras áreas e representantes da sociedade também os integrem. Podem participar profissionais da assistência social e do Direito, por exemplo, e até mesmo religiosos. A presença deles, garante Bonamigo, não significa radicalização. O comitê do hospital de Joaçaba já contou com um sacerdote católico, e agora tem a participação de um religioso evangélico.
— O comitê tem uma forma de deliberação que é tentar ir pelo consenso — explica Bonamigo.
Não há estimativas de quantos hospitais no Brasil contam com um comitê de bioética, mas o CFM garante que são poucos. Segundo Bonamigo, são apenas quatro em Santa Catarina: além do de Joaçaba, há um em Florianópolis, um Joinville e um em Chapecó. No Brasil, o primeiro comitê surgiu em 1993 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A situação é bem diferente nos Estados Unidos, onde o marco para a reflexão sobre o assunto veio nos anos 1960, com a hemodiálise. O tratamento, um avanço para quem sofria de insuficiência renal, esbarrou num problema: havia mais pacientes que máquinas. Hoje, passados mais de 50 anos, os comitês se generalizaram nos Estados Unidos. Segundo Bonamigo, todo hospital lá tem um.
O CFM não tem o poder de impor a criação dos comitês, o que depende de lei. Mas garante que vai oferecer apoio aos hospitais interessados. Bonamigo avalia que os comitês de bioética vão funcionar efetivamente no Brasil no momento em que houver lei exigindo isso, ou quando a destinação de verbas for condicionada à sua existência. Segundo ele, foi justamente o direcionamento do dinheiro que levou os Estados Unidos a terem um comitê em cada hospital. Além de serem poucos, os comitês no Brasil ainda têm um trabalho pouco intenso. O hospital de Joaçaba, que é pequeno, com 120 leitos, é um exemplo: aciona o comitê para analisar dois ou três casos concretos por ano. Fora isso, o grupo estuda situações que podem vir a acontecer de fato.
— Lá fora, há comitês que trabalham 24 horas. Há comitês que se revezam em plantão por 24 horas. No Brasil é um processo ainda incipiente: são poucos e não há plantão — avalia o presidente do CFM, Carlos Vital.
Após a publicação da matéria, o presidente do comitê de bioética do Hospital Universitário Santa Terezinha em Joaçaba (SC), Elcio Luiz Bonamigo, retificou parte do que tinha dito ao GLOBO. Segundo ele, a solução para o caso do paciente que recusou a transfusão de sangue não foi definida pelo comitê do hospital, como havia afirmado inicialmente. Bonamigo esclareceu que apenas conversou informalmente com os familiares, dizendo que não havia a garantia de que a cirurgia seria realizada sem sangue. Mesmo assim, a família optou por fazer a cirurgia em outro local. Somente depois disso é que o caso foi levado para discussão do comitê, como uma forma de treinar o grupo.