fonte: O Globo

O combate à sepse, síndrome da resposta inflamatória considerada uma das grandes vilãs do sistema de saúde, ganhou munição. Cientistas da Universidade de São Paulo (USP) identificaram uma proteína capaz de impedir o início do processo inflamatório, “enganando” o organismo ao “desligar a chave” que ativa o sistema imunológico quando é detectada a presença de bactérias nocivas.

A inflamação é um mecanismo importante para nos livrar de certos inimigos. Em geral, ocorre no tecido afetado por uma lesão ou infecção. Mas, quando se espalha por diversos órgãos ao mesmo tempo, pode levar o paciente à morte. Esta resposta descontrolada do sistema imunológico acontece devido à sepse, antigamente conhecida como infecção generalizada. Estima-se que cerca de 25% dos leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) no Brasil sejam ocupados por pacientes com esse quadro, e mais da metade dessas pessoas (56%) morrem, segundo o Instituto Latino-americano de Sepse.

Liderada pelo professor Dario Zamboni, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, a pesquisa se debruçou sobre a bactéria Coxiella burnetii. Os cientistas identificaram nesse micro-organismo um gene que foi denominado icaA, que, por sua vez, expressa a proteína IcaA (do inglês inhibition of caspase activation, ou “inibição da ativação da caspase”, numa tradução livre ). Esta molécula, conforme revelou o estudo, é capaz de impedir a ativação da caspase-11, enzima que permite o início do processo inflamatório. Segundo Zamboni, a pesquisa, detalhada na publicação científica “Nature Communications”, abre a perspectiva de tratar doenças como a sepse usando drogas que contenham o princípio da IcaA. Ele acha também que, possivelmente, proteínas “irmãs” desta tenham a mesma capacidade.

— Nosso estudo vai continuar, e espero que, nos próximos dois anos, identifiquemos outras proteínas como a IcaA. A Coxiella burnetii secreta mais de 80 proteínas, a grande maioria desconhecida. Então, acredito que muitas delas tenham as mesmas características e também inibam inflamações — comenta Zamboni, que é professor do Departamento de Biologia Celular e Molecular e Bioagentes Patogênicos.

EXPECTATIVA DE NOVOS REMÉDIOS

O caminho até a produção de um medicamento que tire proveito da IcaA e chegue aos hospitais e ao mercado, no entanto, ainda vai ser longo.

— O processo é demorado porque é preciso cumprir muitas fases de testes, ter aprovação da vigilância sanitária, conseguir investimento de alguma empresa — diz Zamboni.

coxiella

A C. burnetii é conhecida de longa data da comunidade científica. Ela, porém, só começou a ser estudada a fundo na última década, após a decodificação de seu genoma, em 2003. A partir daí, ficou mais fácil manipulá-la e cultivá-la em laboratório para testes. A bactéria é encontrada em secreções de animais de criação, como porcos e vacas. O ser humano que tem contato com urina, leite ou fezes desses bichos pode se infectar por via inalatória, já que a Coxiella burnetii se espalha no ar.

— Ela é conhecida por ser muito virulenta. Estima-se que menos de quatro bactérias dessa espécie são suficientes para deixar uma pessoa doente, ao contrário da maioria das outras infecções, que só se formam a partir de uma grande quantidade de bactérias — esclarece o pesquisador, referindo-se à febre Q, causada pela C. burnetii e considerada uma das doença mais infecciosas do mundo.

Para Zamboni, o estudo ajuda a entender por que a C. burnetii é tão patogênica.

— Essa bactéria deve usar várias proteínas para enganar o sistema de defesa do corpo, e agora mostramos que a IcaA é uma delas — explica o pesquisador. — O ideal seria conseguir usar essa característica a favor de quem sofre de doenças infecciosas graves, como a sepse, que não mata apenas durante sua fase aguda, mas até mesmo anos depois, quando a pessoa pode vir a ter uma imunossupressão severa.

CRIANÇAS E IDOSOS TÊM MAIS RISCO

Atualmente, o único modo de se tratar a sepse é com antibióticos, que precisam ser administrados o mais cedo possível. Por isso, é importante que o diagnóstico seja feito rapidamente.

— Se demorar algumas horas para o paciente começar a receber antibióticos, pode ser tarde demais — ressalta Zamboni.

A sepse é popularmente conhecida como infecção generalizada, mas o vice-presidente do Instituto Latino-americano de Sepse, Luciano Azevedo, explica que isto é um equívoco. A síndrome é uma resposta inadequada do organismo a uma infecção grave. Pode acontecer, por exemplo, quando uma pessoa tem uma pneumonia. Na sepse, ao combater a infecção, o organismo gera uma série de inflamações nos órgãos do paciente.

— É importante salientar que qualquer pessoa pode ter sepse, que pode ocorrer por causa de infecções adquiridas no dia a dia ou durante internações, as chamadas infecções hospitalares. Mas, em geral, crianças e idosos têm maior risco, assim como pacientes com doenças crônicas que afetam a imunidade, como diabetes, câncer, Aids, insuficiência renal crônica etc — destaca ele.

CERCA DE 650 MIL CASOS AO ANO

Azevedo afirma, ainda, que é difícil ter estatísticas precisas sobre essa doença. Mesmo países desenvolvidos, conta ele, não têm números de casos ou de mortalidade completamente confiáveis.

— Com base em dados mundiais extrapolados para o Brasil, acreditamos que, em nosso país, temos por volta de 650 mil casos de sepse ao ano, sendo que esses números estão provavelmente subestimados — avalia.

De acordo com Azevedo, a dificuldade de se reverter um quadro de sepse se deve à falta de entendimento sobre os mecanismos da doença, o que pode ser mudado com a ajuda de pesquisas como a desenvolvida pela USP.

— Não sabemos ainda por que a presença de uma bactéria causa a resposta inadequada do organismo e por que essa resposta pode levar à morte, independentemente de a bactéria ter sido controlada ou não. Assim, estudos como este são importantes para encontrarmos alvos de tratamento — destaca o especialista, que também é diretor científico da Sociedade Paulista de Terapia Intensiva.