fonte: Folha de SP
por Marcelo Leite
Eis aqui uma proposta modernizadora: que os membros do Congresso Nacional passem a tratar-se por “Vossa Ignorância”, em lugar de “Vossa Excelência”. Se o segundo tratamento já não combinava muito com o nível ético exibido na Câmara e no Senado, o primeiro tem tudo a ver com a decisão dos parlamentares sobre a fosfoetanolamina.
Ignoraram, os nobres senadores e deputados, que a “fosfo”, apelidada de “pílula do câncer”, está para a ciência na mesma condição da barbatana de tubarão, do cogumelo do sol e da maca peruana. São pseudomedicamentos que se aproveitam da credulidade e do desespero dos enfermos e seus parentes para vender uma esperança desumana.
Ignoraram que o sistema consagrado de três fases de pesquisas clínicas com substâncias de potencial terapêutico tem por objetivo proteger pacientes dos charlatões. Pouco importa se o escroque farmacológico se abriga na USP, na Sorbonne ou em Harvard –todos estão obrigados a provar, com testes reprodutíveis por qualquer pesquisador, que seu remédio não é tóxico, tem eficácia e, de preferência, supera os medicamentos existentes.
Ignoraram que a fosfo foi reprovada logo no primeiro teste patrocinado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O MCTI foi levado a saltar etapas sob pressão de demagogos e oportunistas que, a pretexto de razões humanitárias, não hesitam em desperdiçar dinheiro público com uma droga só porque ela se tornou famosa.
Ignoraram que apenas um terço da “pílula do câncer” se compõe de fato de fosfoetanolamina. Que as cápsulas não têm 500 mg, como alegado, mas 300 mg. Que esse é o tipo da precariedade esperável de medicamento fabricado em laboratório inapropriado. Que só um componente do preparado mostrou alguma ação contra células tumorais, e mesmo assim com milésimos da eficácia de medicamentos no mercado.
Ignoraram que, ao autorizar produção, importação, distribuição, prescrição, posse ou uso da substância independentemente de registro sanitário, deitaram por terra a autoridade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Aberto o precedente, qualquer garrafada da esquina pode almejar ao mesmo privilégio, se o fabricante conseguir convencer o número suficiente de desavisados de que sua panaceia é mesmo milagrosa.
Ignoraram que, assim agindo, desceram ao mesmo patamar subterrâneo de juízes que, impensada ou negligentemente, obrigavam a USP de São Carlos a fabricar e fornecer a “pílula do câncer” para fulano, beltrano e sicrano. Os mesmos que não pensam duas vezes antes de desperdiçar milhões do contribuinte quando forçam o SUS a pagar terapias duvidosas com células-tronco e quetais em países asiáticos.
Ignoraram que em hipótese alguma estamos “diante de uma das mais relevantes descobertas médicas dos últimos anos”, ao contrário do que afirmou, de maneira irresponsável, o senador Ivo Cassol (PP-RO). Que revolução é essa, reconhecida só por políticos, não pelos especialistas na matéria?
Ignoraram que as redes sociais, os programas populares de TV e rádio e legiões de desinformados obcecados com curas milagrosas não são capazes de julgar a eficácia e a utilidade de um novo remédio. Doentes terminais e suas famílias por certo são livres para recorrer a tudo que lhes parecer apropriado, mas o Estado e os meios de comunicação prestam um desserviço público quando apoiam e encorajam crendices infundadas.
Ignoraram, além disso, que o disparate por eles cometido rebaixa ainda mais o conceito do Parlamento entre pessoas informadas e perante do mundo. Não que eles pareçam muito preocupados com isso, se a irresponsabilidade lhes granjear alguns minutos de celebridade e alguns votos em futura eleição.
Ignoraram, por fim, que o país está indo para o buraco porque agem assim não só com uma pílula qualquer, mas com todos os assuntos de Estado, a começar pela escolha e manutenção de presidentes da Câmara e do Senado enrolados em escândalos.
Vista desse ângulo, a fosfo até que não é tão amarga. Mas tomara que a presidente Dilma Rousseff se recuse a engolir mais essa.