fonte: Folha de SP

por Cláudia Collucci

Vamos jogar limpo? Vamos deixar de lado a utopia, os interesses pessoais e corporativos e falar sério sobre saúde? Vamos olhar para algumas questões com a razão e não com o fígado?

Sim, a Constituição Federal garante o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Isso é lindo, uma conquista da qual não podemos abrir mão nunca. Mas, na prática, nem países mais ricos e menos populosos que o nosso ousaram prometer “tudo para todos” em saúde.

Talvez seja o momento de amadurecer a discussão sobre como e o que é possível oferecer em saúde pública em vez de continuar no sonho de um projeto de saúde inatingível. Sim, eu também sonho com um sistema justo, fraterno e igualitário, mas começo a perder as esperanças de ver isso concretizado.

Na realidade, desde a criação do SUS, há quase 30 anos, nunca houve apoio massivo da população em torno desse projeto. Mesmo o movimento trabalhista, tão importante no processo de redemocratização do país, não encampou a luta da saúde enquanto direito social. A briga dos sindicatos sempre foi por uma assistência médico-hospitalar privada, por meio de planos e seguros de saúde. O mesmo aconteceu com os servidores públicos.

Junte-se a isso um subfinanciamento crônico, a falta de vontade política e a má gestão e pronto: eis o SUS que todos conhecem, cada vez mais pobre, cada vez mais sucateado, cada vez mais ameaçado pelos interesses privados.

Agora, com a crise financeira, os cortes no orçamento da Saúde e o crescente processo de judicialização da saúde, a situação está se tornando insustentável. Se por um lado buscar na Justiça remédios não disponíveis na rede pública seja uma alternativa eficaz para conter as omissões do Estado, garantindo a incorporação mais rápida de novos medicamentos e novas tecnologias, por outro isso está aumentando muito a iniquidade em saúde.

É JUSTO?

No Estado de São Paulo, 70% dos médicos que assinam laudos que embasam as ações judiciais são da rede privada, o que mostra que a maioria dos que buscam o Judiciário vem da classe média e alta. Muitos têm planos de saúde e acionam o SUS em busca de medicamentos e tratamentos que os planos não oferecem.

Mas o dinheiro necessário para atender às demandas judiciais não nasce em árvores. Os orçamentos são finitos e, para atender a uma pequena parcela que busca esses remédios por via judicial, gestores precisam retirar o dinheiro de outras áreas da saúde.

Atualmente, o governo paulista gasta por ano R$ 1 bilhão com a judicialização na saúde. Do total de ações (47 mil), 69% são de médicos da rede privada de saúde. Quase 90% do valor gasto pelo Estado de São Paulo na judicialização é para atender a apenas 4% do total de medicamentos requeridos na via judicial. Isso significa que cerca de R$ 900 milhões são gastos para atendimento de uma parcela muito pequena da população. É justo?

Por outro lado, vocês podem questionar: não é legítimo procurar a Justiça para obter o que o Estado não me oferece? É legítimo desde de que ele não esteja cumprindo o que as listas oficiais determinam. Ah! mas o Estado demora para incorporar etc, etc. Então a briga tem que ser por isso.

É assim que funciona nos países com sistemas públicos de saúde, como Reino Unido, França, Espanha e Canadá. Oferecem apenas os medicamentos, tratamentos e procedimentos previstos em listas estabelecidas pelo Estado. Tem chiadeira, claro, mas há respeito porque praticamente todos usam o sistema público de saúde. E se orgulham disso. E brigam muito por ele.

PRIORIDADES

Gostaria muito de ver essa discussão ganhar corpo entre as entidades médicas e de saúde que há anos batem na tecla do subfinanciamento do SUS (que, sem dúvida, é a questão prioritária), mas que não abraçam o tema da judicialização e outros assuntos igualmente fundamentais, como a má gestão, as fraudes, e a falta de eficiência dos serviços públicos e as propostas para enfrentá-las.

E, o mais importante: o que priorizar, já que o “tudo para todos” é impraticável? Há alguns projetos de lei nesse sentido que pretendem delimitar os tratamentos e serviços que o SUS tem obrigação de oferecer. Por exemplo, oferecer o que consta nas duas listas, a Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) e a Renases (Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde). “Chegou a hora de dizer claramente que não é possível dar tudo a todos”, disse a advogada Lenir Santos, especializada em gestão e direito público e que participou da criação do SUS, em entrevista à revista “Época” ano passado.

Isso não significa retroceder, abrir mão dos direitos fundamentais previstos na Constituição e muito menos deixar de brigar por um SUS melhor. Ao contrário. É uma forma mais efetiva e mais realista de lutar por eles.