fonte: Folha de SP

O número de ações judiciais para acesso aos serviços públicos de saúde e educação disparou no Brasil.

As decisões, que autorizam os beneficiados a “furar” longas filas de espera, têm acirrado o debate sobre como repartir os recursos das políticas sociais, em um momento de restrição severa de gastos pelos governos federal, estaduais e dos municípios.

Dados inéditos da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo mostram que o número de internações, cirurgias e procedimentos no SUS feitos por ordem da Justiça quintuplicou entre 2010 e 2015, passando de 520 para 2.752.

As matrículas em creches e pré-escolas públicas do município de São Paulo seguiram a mesma tendência. Números levantados pela Secretaria de Educação a pedido da Folha indicam que as decisões judiciais nesse sentido saltaram de 13.891, em 2013, para 20.719 no ano passado.

Já no Distrito Federal, elas aumentaram de 674 em 2014 para 1.231 em 2015.

CONFLITO DISTRIBUTIVO

Essa crescente judicialização é polêmica porque, embora responda a uma demanda legítima, pode, segundo especialistas, privilegiar o atendimento a setores mais bem informados da sociedade, deixando as camadas muito vulneráveis para trás.

“A judicialização mostra que temos um conflito distributivo. Precisamos ter um debate sobre o que é prioritário”, diz Sandro Cabral, especialista em estratégia do setor público do Insper.

Dados do setor de saúde ilustram bem esse dilema.

O estoque de ações perdidas pelo Estado que atualmente é atendido soma 47,8 mil, gerando uma despesa adicional de R$ 1 bilhão por ano à Secretaria da Saúde.

Desse valor, R$ 900 milhões se destinam a remédios de alto custo para menos de 2.000 pessoas. Essa despesa supera, por exemplo, os R$ 600 milhões gastos por ano no programa normal de assistência farmacêutica, que atende 700 mil pacientes.

Segundo o governo paulista, apenas 13% dos processos que tramitam no Estado têm como origem a Defensoria Pública–que atende pessoas com renda familiar mensal de até, aproximadamente, três salários mínimos.

“A grande maioria é ingressada por advogados particulares e se baseia em laudos e prescrições de médicos privados”, diz David Uip, secretário de Estado da Saúde.

No caso da educação infantil, segundo o defensor público Alvimar Virgílio de Almeida, a instituição tem feito, no município de São Paulo, cerca de 50 atendimentos diários relacionados a pedidos de vaga ou de transferências.

“Dentro da baixa faixa de renda que atendemos, temos demanda tanto das pessoas mais vulneráveis quanto das menos. É óbvio que, entre os mais vulneráveis, existe uma demanda reprimida até por desconhecimento do direito.”

Para representantes do setor educacional, não está claro que os mais pobres sejam os principais beneficiados pela judicialização.

“Acredita-se que aquelas crianças de famílias em situações mais vulneráveis são as que menos recorrem a esse tipo de recurso. Podemos estar diante de um sistema com maior segregação social”, diz Aléssio Costa Lima, presidente nacional da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação).

REDISCUTIR A LEI

Segundo especialistas, o que está em debate não é o mérito das decisões favoráveis da Justiça. O acesso à educação básica e à saúde, no Brasil, é garantido pela lei.

Mas, diante dos recursos escassos do setor público e das dificuldades de gestão, a legislação talvez precise ser reinterpretada e rediscutida.

Para o advogado Octávio Luiz Motta Ferraz, professor da faculdade de direito Dickson Poon e afiliado do Brazil Institute, ambos do King’s College de Londres, no caso da saúde, por exemplo, há um equívoco entre os juristas brasileiros na forma de interpretar o direito ao acesso.

“O Judiciário não aumenta o Orçamento num passe de mágica, mas redistribui o Orçamento limitado. Se os litigantes fazem parte de um grupo que não está na base da pirâmide, o efeito dessa redistribuição é regressivo.”

No Rio Grande do Sul, onde existe uma ação de aproximação entre os gestores de saúde e os juízes, já houve uma redução expressiva do número de ações judiciais em saúde: de 13.926, em 2013, para 6.685, em 2015.

Em abril último, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) realizaram um fórum para discutir o tema. Uma das ideias debatidas foi a criação de uma equipe médica para assessorar os juízes.

Para o desembargador Renato Dresch, membro do Fórum do CNJ, o juiz não pode negar o pedido de um doente. “Ele não entende de medicina. Se há um documento indicando risco de vida, irá atender.” Segundo ele, é importante que as secretarias de Saúde utilizem notas técnicas para embasar sua defesa.