fonte: O Globo
por Lígia Bahia
A associação causal entre saúde e as condições de vida e trabalho foi estabelecida no século XVII. Mudanças nos padrões de emprego e renda afetam positiva ou negativamente a morbidade, mortalidade e longevidade. A comprovação científica contribuiu para a passagem à modernidade, fundamentada nas declarações de direitos humanos. Os sistemas públicos de saúde foram constituídos pela justaposição das acepções sobre os direitos inalienáveis dos indivíduos, independentemente das leis vigentes aqui ou ali ou do pertencimento a grupos sociais, à substituição de parte das atribuições da caridade por instituições públicas com acesso universal.
Sempre houve contestação. Mas as decantadas contradições entre liberdade e igualdade não impediram que o direito à condição plena de ser humano tenha se integrado ao vocabulário político internacional. Políticas econômicas e sociais administradas em conjunto deveriam garantir, de um lado, plena utilização dos recursos disponíveis e aumento da capacidade produtiva. De outro, a possibilidade de dispor de bens e serviços de qualidade.
O abismo entre as generosas constituições nacionais e as ásperas realidades de sociedades desiguais como a brasileira era atribuído a bases econômicas e circunstâncias históricas que poderiam ser superadas. A transformação da estrutura produtiva e ocupacional e demográfica e a crise econômica passaram a ameaçar não só a sustentabilidade, como também o significado de inalienável dos direitos humanos. Os serviços ocupam cada vez mais espaço na distribuição de postos de trabalho e ofertam empregos muito diferenciados, quanto ao grau de sofisticação, porém nem sempre estáveis e bem remunerados. O trabalhador não é mais aquele cuja contribuição para a Previdência era ininterrupta e relativamente maior. O aumento da esperança de vida e a redução da fecundidade resultam no envelhecimento populacional, e cresceu o número de famílias monoparentais, especialmente mães solteiras ou divorciadas que assumem a criação de seus filhos. Fontes geradoras de despesas para benefícios previdenciários e serviços de saúde foram ampliadas. A solução é turbinar as receitas ou “dar um perdido” nas políticas sociais.
A definição do que deve ou não ser direito não é objetiva, está sujeita a interpretação acerca do lugar no mundo dos cidadãos, identificação das fontes de insegurança e das condições necessárias para que os seres humanos sejam autônomos. Depende, portanto, das afinidades de quem decide a incorporação ou retirada dos direitos na ordem jurídica com determinados grupos e interesses.
Há quem considere que direitos propriamente ditos seriam os de propriedade, realização de contratos, liberdade de expressão, locomoção e julgamento igualitário perante tribunais isentos. Aqueles relacionados com o bem-estar social não passariam de nobres intenções, cuja efetividade ficaria condicionada aos recursos disponíveis. A insistência em apresentar planos de saúde baratos e com restrições de coberturas, acesso a escolas privadas mal avaliadas e previdência privada como soluções vantajosas não é imparcial. A outra face da segregação de uma sociedade iníqua é a superinclusão dos segmentos privilegiados. Empresas privadas de saúde, preocupadas com a redução de receitas, puseram em três páginas, sem nenhuma justificativa técnica, uma descrição sumária dos produtos que querem comercializar. Pretendem vender planos mais baratos com menores garantias de acesso e uso e se livrarem solenemente da parte dos pagamentos assistenciais. A demanda empresarial foi absorvida integralmente pelo Ministério da Saúde. Apesar de existir uma farta literatura contendo evidências contrárias ao racionamento da atenção à saúde, o modo obsequioso de acolhimento das demandas de setores empresariais incapacita as autoridades públicas para o exercício de normas básicas da democracia e da transparência. Cortes de recursos para a Saúde (redução real de 2,2% entre 2014 e 2015), combinados com barreiras para a obtenção de benefícios previdenciários para pobres e miseráveis, são políticas irresponsáveis. Crianças, pré-idosos (menos de 70 anos) de famílias de desempregados, semiempregados, sem renda e doentes terão imensas dificuldades para iniciar e dar continuidade a tratamentos de saúde. Serão os novos “nem, nem”. Não poderão pagar atendimento por profissionais de saúde, hospitais e remédios, e não disporão de atenção pública gratuita adequada.
Uma vida civilizada requer que as crianças tenham as mesmas oportunidades, seja lá qual for sua origem, das facilidades ou dificuldades de suas famílias, e garantia de independência de indivíduos em idade avançada. Direitos sociais não pressupõem a perda de eficiência para ganhar solidariedade, podem estimular sinergias que assegurem maior produção e melhor distribuição da riqueza. O debate sobre saúde e Previdência Social, em um país com 13 milhões de desempregados e persistência de disparidades regionais gritantes (em 2015 a taxa de mortalidade infantil no Maranhão foi 22,4 e a do Rio Grande do Sul 9,9), não é uma escaramuça entre inconsequentes perdulários e circunspectos poupadores. Imprudência mesmo é ressuscitar o fracassado e corrupto modelo de financiamento público e controle privado de atividades sociais.
Ligia Bahia é professora da UFRJ