fonte: Época
O aperfeiçoamento de técnicas para analisar e manipular o material genético abriu uma nova fronteira no tratamento do câncer. Agora, os médicos têm à disposição drogas capazes de atacar mutações específicas dos tumores, sem produzir efeitos colaterais, e de estimular o sistema de defesa do paciente para agir contra o tumor. O problema é que os avanços vieram acompanhados do aumento do preço dessas novas opções de tratamento – e das expectativas dos pacientes –, não necessariamente na mesma proporção dos benefícios que trazem. Tratamentos de dezenas de milhares de dólares podem se traduzir em algumas poucas semanas de sobrevida. Como conciliar o orçamento do sistema público com a esperança dos pacientes e os benefícios reais que as novas drogas trazem se tornou um desafio tão grande quanto descobrir a cura.
“A verdade é que nem todos os pacientes terão acesso a esses novos tratamentos”, afirma o cirurgião oncológico neozelandês Murray Brennan, vice-presidente para Programas Internacionais do Memorial Sloan Kattering Cancer Center, dos Estados Unidos. “Não há nenhum problema se você tem muito dinheiro e está disposto a tomar uma droga muito cara que aumentará sua vida por apenas algumas semanas. Mas essa não é uma obrigação do sistema público de saúde.” Brennan, um dos cirurgiões mais respeitados do mundo, está no Brasil nesta semana para participar do seminário Intersections III, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Para ele, os gestores de saúde não podem ter muitas dúvidas sobre que tipo de tratamento disponibilizar no sistema público de saúde: aqueles que trarão mais benefícios para a sociedade.
No Brasil, a demanda judicial para que o Estado arque com os custos de tratamentos caros se tornou um dos principais problemas de saúde do país. Um levantamento da Interfarma, associação que congrega a indústria farmacêutica, mostra que, das 18 principais drogas usadas para tratar os cânceres mais comuns em 2014, apenas seis estavam disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). No embate entre o que o apertado orçamento público permite e o que os pacientes almejam, gastam-se de maneira mal planejada os escassos recursos públicos. Em entrevista a ÉPOCA, Brennan afirma ter pouca esperança de que os governos conseguirão resolver o impasse. O dever de prescrever adequadamente os tratamentos – e educar os pacientes para que aceitem as limitações da ciência – cabe aos médicos, diz Brennan. “Temos de começar a perguntar aos pacientes o que eles valorizam, não apenas dizer eu posso aumentar sua sobrevivência”, diz Brennan. “Vale ficar internado em uma unidade de terapia intensiva de um hospital por três semanas para viver mais três?” Leia a íntegra da entrevista a seguir:
ÉPOCA – Os novos tratamentos contra o câncer estão cada vez mais caros. Como incorporar esses avanços ao sistema público de saúde?
Murray Brennan – A verdade é que nem todos os pacientes terão acesso a esses novos tratamentos. O sistema público de saúde, por sua natureza, tem a obrigação de gastar o dinheiro da sociedade de maneira inteligente. Por isso, precisa estabelecer um critério. É preciso oferecer tratamentos que funcionem em um determinado nível, que prolonguem a vida por, no mínimo, um certo tempo. Não há nenhum problema se você tem muito dinheiro e está disposto a tomar uma droga muito cara que aumentará sua vida por apenas algumas semanas. Mas essa não é uma obrigação do sistema público de saúde. Nós aprovamos o registro de drogas que talvez deem cinco semanas de sobrevivência. A boa notícia é que estamos ficando melhores em avaliar as vantagens e desvantagens dos tratamentos para cada paciente.
ÉPOCA – Esse é o papel da chamada medicina personalizada ou de precisão, em que os dados genéticos do tumor guiam a escolha do tratamento?
Brennan – É preciso identificar os pacientes que se beneficiarão de cada tratamento. Apenas dessa maneira fará sentido gastar o dinheiro. Podemos prever pela constituição genética do tumor se ele responderá ao tratamento. Se o tumor tem uma mutação específica, da qual ele depende para crescer, pode não ser possível curá-lo, mas parar seu crescimento. É como se você estivesse dirigindo um carro e tirasse o pé do acelerador. O carro continuaria funcionando, mas não iria a lugar algum. Se pudermos identificar o que chamamos de mutação promotora e bloqueá-la, o carro não vai para a frente. Outra maneira de fazer isso seria encontrar uma mutação que desacelere o tumor, como os freios no carro.
ÉPOCA – Ainda que já seja possível usar a medicina de precisão em alguns casos, nem todos os pacientes poderão usá-la no sistema público de saúde porque não há indicação para seus casos. É compreensivelmente difícil aceitar que não se poderá tentar todas as possibilidades quando há uma doença fatal em jogo.
Brennan – O problema é que os pacientes têm expectativas irreais. Estudos sugerem que os pacientes sempre pensam que o benefício de um tratamento é maior do que realmente é. Sabemos que os médicos também tendem a dizer que o benefício é maior do que é. Os médicos naturalmente querem ajudar as pessoas. Por isso temos de ser muito cuidadosos para não correr o risco de causar danos. Temos de pensar não apenas nos benefícios, mas também nos efeitos negativos. É preciso colocar na balança mais que um custo financeiro, mas também um custo pessoal. Vale ficar internado em uma unidade de terapia intensiva de um hospital por três semanas para viver mais três?
ÉPOCA – De onde vêm essas expectativas irreais?
Brennan – Nós, os médicos, e a indústria farmacêutica não educamos a população bem. Não descrevemos a magnitude dos benefícios dos novos tratamentos, apenas dizemos que há uma melhora. Por exemplo: são feitas grandes pesquisas, com milhares de pacientes, para mostrar se uma nova droga é eficaz ou não. Não raramente, há apenas pequenos benefícios percentuais: talvez eleve a taxa de sobrevivência de 90% para 92% dos pacientes. Esses resultados são anunciados da seguinte maneira: antes, 10% das pessoas morriam, agora morrem 8%, o que significa que aumentamos a sobrevivência em 20%. O que não é dito é que, sem o tratamento, 90% das pessoas sobreviveriam de qualquer maneira. Isso significa que, para uma pessoa se beneficiar, você tem de tratar 50 pessoas. Se tivéssemos dito para o paciente: “Temos um tratamento que pode aumentar a sua sobrevivência, mas há nove chances em dez de que você não precise”, é uma maneira diferente de explicar, em vez de dizer apenas que podemos aumentar sua sobrevivência em 20%. E, a propósito, estamos falando em aumentar a sobrevida em semanas ou alguns meses. Ninguém está falando mentiras. São só maneiras diferentes de dizer a verdade.
ÉPOCA – A indústria farmacêutica faz os resultados parecem melhores que são?
Brennan – Todo mundo é vilão nessa história e ninguém está disposto a reconhecer isso. Os pacientes são um problema, os médicos são um problema, a indústria farmacêutica e as seguradoras são outro. Prometemos o que não podemos entregar. É muito triste os preços serem tão altos por causa disso. As empresas farmacêuticas dizem que as drogas são caras porque elas têm obrigações com os acionistas de ganhar dinheiro porque perderam dinheiro nas últimas dez drogas. Então se torna uma discussão mais complicada.
ÉPOCA – Alguns especialistas sugerem que devemos tornar mais rígidos os critérios de aprovação das drogas para não permitir benefícios marginais. Sem o registro dessas drogas, não há pressão para disponibilizá-las no sistema público. O senhor concorda?
Brennan – Quando falamos de um sistema de saúde pública, antes mesmo de pensar em aprovar uma droga, devemos mostrar que ela é melhor que a anterior, não a mesma coisa. Não deveríamos aprovar uma droga que traz o mesmo benefício da anterior e que custa mais caro.
ÉPOCA – Cabe aos governos corrigir esse problema?
Brennan – Não acho que o governo, pelo menos o dos Estados Unidos, conseguirá consertar isso. A solução é os médicos educarem os pacientes para eles se tornarem mais realistas. Os médicos também precisam aceitar que não é possível tratar uma pessoa quando eles acham que não haverá benefícios.
ÉPOCA – É preciso diminuir as expectativas construídas nos últimos anos com os avanços e dar ênfase a outros valores, como qualidade de vida, e não só à cura?
Brennan – Concordo com isso. O problema é que a definição de valor é muito subjetiva e varia de pessoa para pessoa. Qualidade de vida é algo diferente para todo mundo. É preciso perguntar ao paciente o que ele quer. Alguns dirão: “Eu quero ser curado amanhã”. Bom, isso nós não podemos fazer. Alguns podem querer viver até a formatura do neto no jardim de infância e outros só querem estar vivos até o casamento da filha. Nós temos de começar a perguntar aos pacientes o que eles valorizam, não apenas dizer “eu posso aumentar sua sobrevivência”.