fonte: Folha de SP
por Claudia Collucci
“Até quando o Estado permanecerá impune a eventuais responsabilizações civis pela perda de uma chance do paciente do SUS de ser curado ou de ter uma sobrevida?”
O questionamento vem do advogado Flavio Cardoso de Albuquerque Filho, especializado na área do direito à saúde, em artigo publicado no site “JusBrasil”. Ele usou como base uma reportagem publicada nesta Folha na semana passada sobre a via-crúcis de pacientes sergipanos em busca de tratamento de infarto no SUS.
Flávio questiona, por exemplo, o fato de apenas 47,5% dos pacientes usuários do SUS chegarem ao hospital especializado em tempo hábil para o tratamento do infarto. Nas instituições privadas, essa taxa foi de 80,5%.
Assim, a vítima de infarto usuária do SUS tem menos chance de tratamento adequado e, consequentemente, menos chance de sobrevida. O estudo feito em Sergipe deixa isso claro: a taxa de mortalidade de pacientes infartados do SUS foi de 10,3%, enquanto no setor privado, de 4,9%.
Entre outras razões, os pacientes estão demorando para chegar ao hospital especializado em tempo hábil porque o Estado falha na organização da rede de saúde e no transporte desses doentes em um prazo inferior a 12 horas (janela do tratamento). Faltam ambulâncias, por exemplo.
Sob o ponto de vista jurídico, essa situação se configuraria em “perda de uma chance”. Ou, no âmbito da saúde, perda de uma chance de cura ou de sobrevida.
Desenvolvida na França na década de 1960 e já aplicada em tribunais europeus e americanos, a teoria da perda de uma chance é caracterizado por situações em que, por culpa de um agente, a vítima fica privada de alcançar uma vantagem ou evitar uma perda. Por exemplo, um paciente acometido de doença grave que é submetido a um tratamento médico equivocado e vem a morrer em razão daquela doença preexistente ao tratamento.
Os tribunais têm entendido que o simples fato de o paciente ser impedido de se submeter ao tratamento correto, o qual, ainda que em tese, poderia lhe trazer um benefício, representa um dano que deve ser indenizável. Repito: a mera chance do tratamento já seria um bem jurídico indenizável.
No Brasil, essa teoria é pouco aplicada, mas há casos emblemáticos, como um julgamento do Superior Tribunal de Justiça em 2013. A ação foi proposta pelo viúvo da vítima e seus filhos contra o médico que tratou da paciente. A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, aplicou a teoria da perda da chance, defendendo que não há necessidade de se apurar se o bem final (a vida) foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso bastaria.
Se esse entendimento jurídico prosperar, a já epidêmica judicialização da saúde pode assumir contornos inimagináveis. Hoje as ações por medicamentos e tratamentos já consomem cerca de R$ 7 bilhões por ano nas três esferas (federal, estadual e municipal). Muitos orçamentos públicos estão comprometidos e recursos destinados a programas mais abrangentes, como o que oferta medicamentos, estão sendo drenados para o pagamento de demandas judiciais.
Também já está claro que esse processo aumenta a iniquidade em saúde. Quem tem dinheiro ou conhecimento para processar o Estado, tem acesso a remédios e tratamentos mais modernos, cirurgias eletivas em prazo recorde e vagas garantidas na UTI. Sim, senhores, até vagas na UTI tem sido judicializadas.
Por outro lado, é fato que o aumento de processos judiciais têm levado o governo federal a acelerar a incorporação de novos medicamentos e tratamentos no SUS. A questão é saber por quanto tempo o país sustentará canetadas de juízes como “organizadoras” de políticas públicas.