fonte: Estadão
A pequena distância a pé da estação Todoroki, na curva de uma alameda de cerejeiras, vê-se um pequeno templo de madeira, abrigando um Buda bebê. Os moradores desse subúrbio de Tóquio pedem que o menino lhes conceda pin pin korori. isto é, duas coisas: uma vida longa e ativa, e uma morte rápida e indolor.
Só parte desse desejo duplo costuma se realizar. O paradoxo da medicina moderna é que hoje as pessoas vivem mais tempo que antes, mas passam boa parte dessa sobrevida doentes. A morte raramente é rápida ou indolor. Com frequência, é traumática. Em geral, à medida que o fim se aproxima, outros objetivos se sobrepõem à ideia de prolongar a vida até o último instante possível. Mas poucos têm a chance de esclarecer quais são suas prioridades nessa hora. No mundo desenvolvido, a maior parte das pessoas morre em hospitais ou asilos, amiúde depois de passar por tratamentos tão agressivos quanto inúteis. Muitos morrem sozinhos, sem estar em plena posse de suas faculdades mentais, e com dor.
Tal sofrimento é, em larga medida, desnecessário. E a boa notícia é que a medicina começa a se preocupar mais efetivamente com o bem-estar dos pacientes terminais. Está em curso uma reforma para aprimorar a comunicação entre médicos e pacientes e mudar a maneira como são ministrados os cuidados a pessoas que se aproximam da morte. As mudanças significam que os doentes terminais terão menos dor e sofrerão menos. E poderão exercer, até o último instante, maior controle sobre suas vidas.
A morte mudou em muitos aspectos ao longo do século 20. Um deles é a fase da vida em que ela costuma chegar. As últimas quatro gerações ganharam mais tempo médio de vida que as 8 mil anteriores. Em 1900, a expectativa de vida da população mundial era de 32 anos, pouco acima do que era quando do nascimento da agricultura. Hoje é de 71,8 anos. Isso é resultado, principalmente, da queda nas taxas de mortalidade infantil: há cem anos, um terço das crianças morria antes de completar cinco anos. Mas também se deve ao fato de que os adultos hoje vivem mais. Atualmente, um inglês de 50 anos tem bons motivos para acreditar que ainda estará vivo daqui a outros 33; 13 a mais do que em 1900.
No passado, a morte tinha pouca relação com a idade dos indivíduos adultos; as infecções matavam indiscriminadamente. Segundo o ensaísta francês Michel de Montaigne, falecido em 1592, “morrer na velhice é coisa que se vê raramente, singular e extraordinária e portanto menos natural do que qualquer outra”.
Hoje, diz a professora Katherine Sleeman, do King’s College London, o mais comum é que a morte se aproxime sorrateiramente. Pelos seus cálculos, no Reino Unido só 20% dos óbitos acontecem de maneira súbita, como num acidente automobilístico, por exemplo. Em outros 20% dos casos, o fim sobrevém a um rápido declínio, como acontece com algumas vítimas de câncer, que se mantêm razoavelmente ativas até as últimas semanas de vida. Mas 60% das mortes ocorrem depois de vários anos de recaídas e restabelecimentos. Nesses casos, observa-se uma “deterioração lenta e progressiva das funções orgânicas”, diz Sleeman.
Nos países desenvolvidos não é raro que, no fim da vida, uma pessoa passe entre oito e dez anos gravemente doente. Também nas nações mais pobres as doenças crônicas vêm se tornando mais comuns. Em 2015, na China, essas enfermidades foram responsáveis por 75% da mortalidade prematura (taxa de indivíduos que morrem antes de chegar à “idade de referência”, que corresponde, grosso modo, à expectativa de vida), segundo a pesquisa Global Burden Disease. Em 1990, esse índice era de apenas 50%. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que a incidência de câncer e de doenças cardíacas mais que dobrará na África Subsaariana até 2030.
Um efeito colateral do progresso é o que o cirurgião Atul Gawande chama de “o experimento de fazer da mortalidade uma experiência médica”. Há cem anos, a maioria das pessoas morria em casa. Hoje, segundo levantamento realizado pela OMS em 45 países desenvolvidos, isso acontece em menos de um terço dos casos. A morte também costumava ser mais igualitária, diz Haider Warraich, professor do Centro Médico da Universidade Duke e autor de Modern Death (“Morte Moderna”). O quando e onde da morte eram fatores sobre os quais a renda da pessoa tinha impacto reduzido. Hoje, em países ricos, um indivíduo pobre corre risco maior de morrer no hospital do que seus concidadãos mais abastados.
Tentando remediar o irremediável. Muitos óbitos são precedidos de uma profusão de intervenções médicas, com frequência infrutíferas. Numa amostra de médicos japoneses, 90% dizem acreditar que, uma vez entubado, o paciente jamais se restabelecerá. Apesar disso, 20% dos pacientes que morrem nos hospitais do Japão são submetidos a entubação. Mais de 10% dos americanos com câncer terminal fazem quimioterapia em suas duas últimas semanas de vida, ainda que, com a doença em estágio tão avançado, o tratamento não traga benefício algum. Quase um terço dos idosos americanos passa por cirurgias em seu último ano de vida; 8% deles são operados na mesma semana em que morrem.
O atual modelo de financiamento à saúde acaba por estimular o supertratamento. Os hospitais são pagos para fazer coisas nas pessoas, não para prevenir a dor. E o sofrimento não se restringe aos pacientes, colhendo também aqueles que os amam. Muitos dos indivíduos que talvez precisem de entubação ou ventilação artificial não estão em condições de indicar seu consentimento. Estudo realizado nos EUA mostra que, em aproximadamente metade dos casos envolvendo decisões sobre a retirada de aparelhos de suporte vital, os familiares do paciente entram em conflito com os médicos. Um terço dos familiares de pacientes internados em unidades de terapia intensiva (UTIs) apresenta sintomas de transtorno de estresse pós-traumático.
Na hora agá, muitos querem poder “trovejar contra o apagar da luz”, como diz o poeta Dylan Thomas. Outros desejariam comparecer a determinados eventos, como a formatura de um neto, por exemplo. Mas o crescendo de intervenções médicas é, no mais das vezes, automático, e não o resultado de uma decisão pessoal baseada num prognóstico discutido e compreendido com clareza.
A enorme distância entre o que as pessoas esperam dos médicos quando a morte se aproxima e a realidade do tratamento que recebem fica nítida em pesquisa conduzida por The Economist, em parceria com a Kaiser Family Foundation. O levantamento aconteceu em quatro países com diferentes realidades demográficas, tradições religiosas e níveis de desenvolvimento: EUA, Brasil, Itália e Japão. Os entrevistados responderam a um conjunto de questões sobre a morte e os “cuidados de fim de vida”. A maioria havia perdido algum familiar ou amigo próximo nos últimos cinco anos.
Nos quatro países, a maior parte dos participantes da pesquisa diz que gostaria de morrer em casa. Mas nem todos contam com isso — e quantidade ainda menor relata ter sido assim que seus entes queridos morreram. Com exceção dos brasileiros, só pequenos contingentes de entrevistados disseram que prolongar a vida pelo máximo de tempo possível seria preferível a morrer sem dor, desconforto ou sofrimento. Outras pesquisas indicam que é cada vez menor a probabilidade de que esse desejo seja atendido. Um estudo revela que, entre 1998 e 2010, aumentou a proporção de americanos que experimentam confusão mental, depressão e dor em seu último ano de vida.
Às vezes, os desejos que os indivíduos saudáveis têm para os seus últimos instantes de vida acabam se modificando no momento em que a morte realmente se aproxima. “A vida se torna preciosa demais quando já não há muita vida a ser vivida”, diz a geriatra Diane Meier, do Mount Sinai Hospital, de Nova York. Pessoas que abominavam a ideia de serem alimentadas por um tubo com frequência se conformam e aceitam a sonda de alimentação quando a alternativa é a morte.
Palavras que jamais pensei dizer. Mas isso não é suficiente para explicar toda a distância existente entre a morte que as pessoas gostariam de ter e a que efetivamente têm. Muitas vezes, os desejos dos doentes terminais permanecem ignorados ou não são levados em consideração. Entre os entrevistados que participaram das decisões sobre os cuidados de fim de vida a serem ministrados a seus entes queridos, mais de um terço na Itália, no Japão e no Brasil diz que não sabia o que o seu amigo ou familiar desejava. Alguns nem sequer pensaram em tocar no assunto com a pessoa; a outros só tiveram a ideia de perguntar quando era tarde demais. Uma japonesa que cuidou da mãe, vítima de Alzheimer, diz se arrepender, pois, “depois que a porta se fechou, não havia como saber o que ela queria”.
Às vezes, mesmo quando estão a par dos desejos do paciente, os familiares não têm como garantir que eles serão respeitados. Entre 12% e 24% dos entrevistados que haviam perdido alguém próximo dizem que seus desejos de fato não foram atendidos. Entre 25% e 38% afirmam que seus amigos ou familiares suportaram dor desnecessária. Para a maioria, a qualidade dos cuidados ministrados foi “razoável” ou “ruim”.
O tratamento de pacientes terminais com frequência lembra uma “conspiração de silêncio”, diz Robert Fine, da Baylor Scott & White Health, rede filantrópica de saúde do Texas. Nos quatro países em que a nossa pesquisa foi realizada, a maioria dos entrevistados diz que a morte é um assunto geralmente evitado. Uma explicação óbvia para isso é o fato de que as pessoas têm medo da morte. “Em toda pessoa tranquila e razoável existe uma outra pessoa escondida, que morre de medo da morte”, diz o narrador de um romance de Philip Roth. Segundo os proponentes de uma linha de psicologia, a “teoria do gerenciamento do terror”, o medo da morte é a origem de tudo que é caracteristicamente humano, das fobias à religião.
Acontece que, no passado, a morte era ocasião para o que o historiador francês Philippe Ariès chamava de “cerimônia pública”, em que amigos e familiares se reuniam. Hoje, em virtude das transformações por que passaram as estruturas familiares, os indivíduos idosos e enfermos vivem isolados dos mais jovens, os quais, por conta disso, têm menos oportunidades de ver a morte de perto ou de encontrar momentos apropriados para falar sobre sua proximidade. Só 10% dos europeus com mais de 80 anos vivem com seus familiares; metade deles vive sozinha. Até 2020, 40% dos americanos devem estar morrendo sozinhos, em asilos.
No Japão, onde a maioria dos entrevistados de nosso levantamento diz que sua principal preocupação é não se tornar um fardo financeiro para a família, as filhas estão deixando de cuidar dos pais idosos que adoecem e se aproximam da morte, como faziam tradicionalmente. Isso deu origem a instituições como o Lar da Esperança, asilo situado na zona leste de Tóquio que cuida de pessoas que não têm recursos para arcar com internações hospitalares, nem contam com relações familiares que lhes permitam morrer em casa. Há dez anos, Hisako Yanagida, de 88 anos, perdeu o marido, com quem cantava num coral de canções japonesas tradicionais. Agora, com a vista já bastante prejudicada, ela ainda consegue distinguir as fotos do casal que enfeitam sua parede. Ela tenta não pensar na morte: “Não vale a pena”.
De qualquer forma, a maior responsável pelas deficiências nos cuidados de fim de vida é a medicina. A relação entre médicos e pacientes gravemente doentes é marcada por “desconfiança mútua”, diz Naoki Ikegami, da St. Luke’s International University, de Tóquio. Há dez anos, era comum que os médicos japoneses ocultassem diagnósticos de câncer de seus pacientes. Apesar de hoje serem mais honestos, eles continuam insensíveis. Uma japonesa lembra que seu oncologista disse que não seria nada demais se seus cabelos caíssem por causa da quimioterapia.
Além disso, os médicos geralmente superestimam o tempo de vida que resta aos pacientes terminais. Isso faz com acabem adiando o momento de ter uma conversa franca com a pessoa e os leva a recomendar procedimentos drásticos, mas com pouca chance de sucesso. Segundo estudo internacional que revisou prognósticos de pacientes que dois meses depois estavam mortos, os indivíduos gravemente doentes vivem, em média, pouco mais da metade do tempo previsto por seus médicos. Outro estudo mostra que, no caso de pacientes que morreram em até quatro semanas após receberem um prognóstico, só 25% dos médicos acertaram, com variação de uma semana, a data de sua morte. A maioria fez previsões excessivamente otimistas.
Os médicos costumam negligenciar os cuidados paliativos, que envolvem a administração de opioides para dor, tratamentos para a falta de ar e aconselhamento do paciente. Uma questão típica é: “O que é importante para você agora?”. O objetivo não é curar o paciente. Em razão disso, “esses cuidados são vistos como a coisa que você faz quando conclui que o paciente não tem mais chances”, lamenta Ikegami. Apenas 0,2% dos recursos destinados a pesquisas sobre câncer no Reino Unido, e 1% nos EUA, financia investigações sobre tratamentos paliativos.
Rompendo o tabu. As poucas pesquisas existentes revelam o custo dessa negligência. De 2009 para cá, alguns estudos clínicos randomizados controlados tentaram verificar o que acontece quando, em conjunto com procedimentos padrão, como quimioterapia, pacientes com câncer em estágio avançado recebem cuidados paliativos. Em todos os casos, o grupo de pacientes que recebeu cuidados paliativos apresentou índices mais baixos de depressão; e, com exceção do observado em um dos estudos, em todos os outros era menos comum que os pacientes desse grupo relatassem dor.
O extraordinário é que em três desses estudos os pacientes que recebiam cuidados paliativos viveram por mais tempo, muito embora houvessem optado por receber doses menores de tratamento convencional. (Nos dois outros estudos não houve diferença no tempo de sobrevida.) Em um dos estudos, a mediana de sobrevida desses pacientes chegou a um ano, ao passo que, entre os que receberam apenas o tratamento normal, a mediana foi de nove meses. Segundo revisão de estudos publicados sobre casos em que os cuidados paliativos foram adotados em lugar do tratamento padrão, realizada em 2016, mesmo quando os pacientes recebem exclusivamente esses cuidados, seu tempo de vida não parece diminuir.
Não há explicações precisas para esses resultados, e é preciso considerar que as pesquisas dizem respeito, em sua maioria, a pacientes de câncer. Como passam menos tempo no hospital, os indivíduos que recebem cuidados paliativos estão menos sujeitos a contrair infecções. Mas alguns pesquisadores acham que a razão é de fundo psicológico: as sessões de aconselhamento diminuem a depressão, que está associada a um tempo menor de sobrevida. “Às vezes, uma conversa é mais eficaz que a tecnologia”, diz Sleeman.
É o que também pensa Yuki Asano, de 76 anos, que se encontra internado no hospital St. Luke, de Tóquio. Ex-diretor de uma cervejaria, seu corpo está tomado pelo câncer. No ano passado, ele interrompeu a quimioterapia. Os cuidados ministrados por um dos poucos centros de tratamento paliativo do Japão o ajudou a se preparar para a morte. “Conquistei tudo o que eu queria na vida”, diz ele. “Agora estou aguardando a cerimônia de premiação.”
Mas poucas das cerca de 56 milhões de pessoas que morrem todos os anos recebem bons cuidados de fim de vida. Relatório publicado em 2015 pela Economist Intelligence Unit (EIU), empresa irmã de The Economist, avaliou a “qualidade da morte” em 80 países. Só a Áustria e os EUA, segundo a EIU, têm condições de garantir tratamento paliativo para pelo menos metade dos pacientes para os quais esses cuidados seriam indicados.
Muitos países prometem acesso a tratamentos paliativos, mas não disponibilizam recursos para efetivamente oferecê-los a seus cidadão. A Espanha aprovou duas leis para garantir o acesso aos cuidados paliativos mas, na realidade, isso só beneficia 25% dos pacientes. Apesar do movimento em prol dos cuidados paliativos ter se iniciado no Reino Unido, nos anos 1960, apenas 20% dos hospitais do país oferecem acesso a tratamentos desse tipo todos os dias da semana.
A forma como os prestadores de serviços de saúde são financiados geralmente faz com que os cuidados paliativos sejam relegados a um segundo plano. No Japão, os planos de saúde não remuneram os médicos por conversar com seus pacientes terminais sobre as opções que eles têm à disposição no fim da vida. Nos EUA, os hospitais abocanham uma grande fatia dos recursos destinados à saúde, muito embora os indivíduos gravemente doentes recebam melhor tratamento do que em outros países. Nove em cada dez atendimentos de emergência são motivados por deterioração repentina de sintomas como falta de ar. Em sua maioria, esses pacientes receberiam tratamento mais eficaz, mais ágil e mais barato se fossem atendidos em casa.
Pouco a pouco, porém, as coisas estão mudando. Em 2014, a OMS recomendou a integração dos cuidados paliativos aos sistemas nacionais de saúde. Alguns países em desenvolvimento, como Equador, Mongólia e Sri Lanka, começam a seguir a orientação. Nos EUA, alguns planos de saúde estão se dando conta de que o que seria melhor para seus pacientes também seria melhor para eles próprios. Em 2015, o Medicare (programa público de saúde dos EUA, destinado a indivíduos com 65 anos ou mais) anunciou que passaria a pagar por conversas sobre cuidados de fim de vida entre médicos e pacientes.
“Conversar quase sempre ajuda e, mesmo assim, nós não conversamos”, diz Susan Block, da Harvard Medical School. Em sua opinião, para melhorar os cuidados ministrados a pacientes terminais, “todo médico tem de ser um especialista em comunicação”. Os oncologistas americanos, por exemplo, precisam ter, em média, 35 conversas sobre cuidados de fim de vida por mês. Estudo realizado com indivíduos que apresentavam insuficiência cardíaca congestiva mostra que os médicos raramente investiam no assunto quando um paciente manifestava medo de morrer. Quase 75% dos nefrologistas jamais receberam orientações sobre como comunicar aos pacientes que eles estão morrendo. Uma causa comum de estresse entre os médicos é o despreparo para conversar sobre a morte com seus pacientes.
Para reparar essa falha, o Ariadne Labs, grupo de pesquisas fundado por Gawande, lançou o “Guia de Conversação sobre Doenças Graves”. Trata-se de uma lista de tópicos que os médicos precisam necessariamente abordar ao falar com seus pacientes terminais. A recomendação é que o médico comece perguntando o que a pessoa efetivamente sabe sobre sua condição clínica, em seguida verifique até que ponto ela deseja aprofundar seu entendimento, depois ofereça um prognóstico honesto e indague quais são seus objetivos e do que ela está disposta a abrir mão para atingi-los.
Resultados preliminares de um estudo sobre o impacto do guia, realizado no Dana-Farber Cancer Institute, de Boston, indicam que o documento leva os médicos a antecipar esse tipo de conversa com seus pacientes. Os pacientes relatam diminuição da ansiedade. São menos frequentes os episódios de tensão entre médicos e familiares. O programa está se expandindo: em fevereiro, a Baylor Scott & White tornou-se a primeira grande prestadora de serviços de saúde a determinar o uso do guia por toda a sua equipe médica. O National Health Service inglês está fazendo um experimento com o documento em Clatterbridge, perto de Liverpool. Os oncologistas japoneses estão passando por uma reciclagem, em que recebem orientações sobre como falar sobre a morte.
Nos EUA, vem se popularizando nas últimas décadas a elaboração de documentos em que as pessoas especificam o tratamento que desejam receber caso fiquem incapacitadas. Em nosso levantamento, 51% dos americanos com mais de 65 anos registraram por escrito seus desejos para os últimos momentos de vida. No entanto, esses documentos não têm como dar conta de todas as possibilidades que podem vir à tona quando o fim se aproxima. Os médicos temem que os pacientes mudem de ideia. Um estudo mostra que só 43% das pessoas que haviam elaborado esse tipo de documento continuavam querendo receber o mesmo tratamento dois anos mais tarde.
A prática é rara fora dos EUA, mas há uma grande mudança cultural em curso. Já há mais de 4,4 mil “death cafés” — também conhecidos como “cafés mortais”, grupos que organizam eventos em que as pessoas podem comer um pedaço de bolo, tomar uma xícara de chá e falar sobre a morte — espalhados pelo mundo. Entre outros assuntos, as conversas versam sobre livros como When Breath Becomes Air (publicado no Brasil com o título de O Último Sopro de Vida), do falecido neurocirurgião Paul Kalanithi, ou sobre filmes como o documentário Extremis, que foi realizado numa UTI e apresenta visão mais realista sobre o atendimento hospitalar do que algumas populares séries de TV. No Japão, as pessoas podem comprar “cadernos de anotações terminais” para deixar mensagens e instruções para os familiares.
Aqui, no fim de todas as coisas. Em 2010, a jornalista e escritora americana Ellen Goodman fundou o Conversation Project, que começou reunindo pessoas que desejavam compartilhar histórias sobre “mortes boas” e “mortes ruins”. O programa publica guias semelhantes aos do Ariadne Labs, mas voltados para leigos. Recentemente, Laurie Kay, uma senhora de cerca de 80 anos que vive em Boston, disse a seu marido e a sua filha que, para ela, o que mais importava era a dignidade. Quando chegar a hora, ela quer estar bem arrumada, inclusive com as unhas pintadas. Kay admite que pode vir a mudar de opinião, mas agora que “nos abrimos para falar do assunto, vai ser mais fácil retomá-lo mais tarde”.
As pessoas também compartilham experiências de morte pela internet. O “Dying Matters” é um site bastante popular. Em 2013, o jornalista Scott Simon postou mensagens no Twitter enquanto acompanhava a morte de sua mãe (“Batimento cardíaco caindo. Coração parando”, dizia um dos posts). A geriatra inglesa Kate Granger, que morreu de câncer no ano passado, pretendia postar mensagens no Twitter em seus últimos dias de vida, usando a hashtag #deathbedlive (“#leitodemorteaovivo”). Isso acabou não sendo possível, mas um post que ela escreveu foi publicado postumamente: “Obrigada a todos por fazerem parte da minha vida. Tomem conta do meu maridinho maravilhoso @PointonChris (E não o deixem gastar tudo que ele para comprar num Range Rover). Beijos”.
Para aprimorar os cuidados de fim de vida é preciso, antes de mais nada, “tornar a morte um assunto conversável”, sustenta Warraich. Mas isso não é desculpa para que os médicos lavem as mãos e continuem tratando seus pacientes terminais como tratam hoje. A morte continuará sendo uma experiência aterradora para muita gente. Se os sistemas de saúde não modificarem a forma como lidam com a questão, a maior parte das pessoas vai continuar a sofrer desnecessariamente quando chegar ao fim da vida.