fonte: Estadão

Prática geralmente associada à assistência dada a pacientes terminais, os cuidados paliativos ganharam neste mês novo status. Consenso aprovado no último congresso da Associação Americana de Oncologia Clínica, em Chicago (EUA), prevê que as práticas voltadas ao conforto e à qualidade de vida do paciente devem começar no máximo oito semanas após o diagnóstico da doença avançada, e não apenas na fase final da patologia.

Segundo as análises apresentadas, a prática aumenta a sobrevida do paciente com câncer, melhora a qualidade de vida e minimiza os sintomas trazidos pela doença. “A nova diretriz reforça uma tendência que já vínhamos tentando praticar há anos, da intervenção precoce”, explica André Filipe Junqueira dos Santos, vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Pesquisa conduzida pelo especialista em um hospital de Ribeirão Preto mostrou que os pacientes oncológicos só são encaminhados à equipe de cuidados paliativos cerca de seis meses após o diagnóstico da doença metastática.

Os especialistas explicam que, hoje, a prática não é voltada apenas para casos incuráveis ou terminais. “Há pacientes com bom prognóstico, que podem viver anos, ou mesmo que tiveram a doença curada, mas que precisam de apoio multidisciplinar”, diz Aldo Lourenço Dettino, oncologista clínico do A. C. Camargo Cancer Center. Ele cita o caso de um paciente com câncer nos ossos que precisou amputar uma perna, teve a doença removida, mas ainda sentia dores que vinham do local amputado – a condição chamada de síndrome do membro fantasma. “É uma dor neuropática. O câncer já havia sido tratado, mas o paciente ainda passava por sofrimento e precisava de suporte.”

Com o aumento nos casos de câncer no País e a importância dada a novas abordagens de cuidados paliativos, profissionais de todo o País se preparam para lidar com isso nas mais difíceis situações, como em casos de câncer infantojuvenis. Um exemplo é o de duas funcionárias do Hospital Estadual da Criança (HEC) do Rio: a intensivista pediátrica Simone Gregory, de 46 anos, e a psicóloga Michèlle Ávila, de 31, que partiram para a especialização no programa de pós-graduação sobre o tema do Hospital Sírio Libanês, referência no País.

Ali aprenderam até que, às vezes, as normas são para serem burladas. Michèlle e Simone tratavam Alexandre (nome fictício), de 16 anos, que tinha no fêmur esquerdo um osteossarcoma, tumor ósseo agressivo. Certo dia, o rapaz fez um pedido: “Meu cachorro pode vir me ver?”. “Nós sabíamos que a alta não seria mais possível. O nosso entendimento foi de que ele estava querendo se despedir do cãozinho”, conta a psicóloga. Discutiu-se um protocolo para quebrar a regra de que animais não são permitidos em hospitais. “Foi o primeiro sorriso que eu vi dele”, lembra Michèlle.

Para a médica, o grande desafio é promover a “construção de mentalidade, a mudança de pensamento” entre os próprios médicos. “Nós, intensivistas, somos treinados para entubar, pegar veias e devolver aquela criança para a família. Falta na nossa formação esse outro olhar: tem um momento que essas coisas não são possíveis. É preciso um outro tipo de cuidado, cuidar daquela família, transformar aquele momento.”

‘Senti o luto, mas sem ter revolta’, diz mãe

Para a fonoaudióloga Érica Cavalcante de Lucena, de 36 anos, a dor de perder um filho só não foi mais intensa graças à atuação da equipe de cuidados paliativos do Hospital Sírio-Libanês. Diagnosticado com uma doença congênita grave, Miguel morreu aos 6 meses, em novembro de 2015, após ficar três meses internado. “Eu tinha uma terapeuta ocupacional, uma psicóloga, uma enfermeira e uma médica. Senti o luto, mas sem ter uma revolta porque elas me fizeram ver que eu tinha feito de tudo para o meu filho. No caso, os cuidados paliativos serviram para preparar os familiares para a perda.”

No Hospital Estadual da Criança (HEC) do Rio, o caso de uma paciente fez a equipe discutir mais a importância dos cuidados paliativos. Diagnosticada com meningite B aos 7 anos, Giovanna morreu 70 dias depois, após passar por dezenas de transfusões de sangue, cirurgias plásticas para enxerto de pele artificial (a infecção provocou feridas, que necrosaram) e ter braços e pernas amputados, em uma tentativa de salvá-la da infecção. “A gente se viu com a necessidade de cuidar além do físico. Havia ainda conflitos na equipe. Parte achava que não se deviam fazer esforços em reanimações, no prolongamento da vida”, diz a intensivista Simone Gregory, de 46 anos.

O primeiro passo foi o apoio aos pais, que conseguiram autorização para ambos acompanharem a filha. “Todo mundo abraçou a gente, do médico à recepcionista”, disse a veterinária Rosanne da Silva, de 36 anos, mãe da menina. “No começo do tratamento, recebemos informações que foram um choque. O primeiro ortopedista que falou em amputação, ainda no hospital particular, disse isso no corredor, com pessoas passando, de supetão. É importante esse cuidado que encontramos no hospital público. Pode falar tudo, mas com tato.”