fonte: Folha de SP
“Meu filho está morrendo aos poucos. Dá um desespero de ver o tempo passando e ele sem o tratamento que poderia estacionar a doença.”
O desabafo do desempregado Isaias Santana, 43, encontra eco em outras famílias que têm liminares favoráveis para obter drogas de alto custo não disponíveis no SUS, mas se deparam com o descumprimento por parte dos gestores públicos.
A pedido da Folha, o banco de dados jurídico DBJus fez um levantamento nos tribunais de Justiça do país e encontrou 474 casos de descumprimento em 118,6 mil processos pedindo medicamentos. Neles, havia como sanções previstas multa e prisão civil.
O drama é mais um capítulo da judicialização da saúde. Se por um um lado ela desorganiza o sistema de saúde e consome significativa parcela dos orçamentos da União, Estados e municípios (R$ 7 bilhões ao ano) para atender a demandas individuais e específicas, por outro pode ser o único caminho para salvar a vida de pacientes.
Gabryel, 4, filho de Santana e da manicure Graciela Oliveira, 29, tem mucopolissacaridose tipo 2, doença genética que impede o processamento de moléculas do açúcar e pode ser fatal. Sem terapia, apresenta problemas articulares e respiratórios.
A família buscou há dois meses na Justiça um medicamento que custa R$ 1,18 milhão por paciente ao ano e pode fazer com que a doença pare de avançar. A liminar foi deferida, mas a União ainda não entregou a droga. Em nota, o ministério diz que o remédio está em fase de aquisição.
Jéssica Morais, 29, vive drama parecido com a filha Heloísa, 2. Apesar de decisão judicial favorável à oferta do medicamento, ela diz que a menina está sem acesso regular à droga desde janeiro.
Heloísa tem tirosinemia, doença rara em que o organismo não metaboliza a tirosina, substância encontrada na proteína animal.
Ela conseguiu por via judicial o medicamento nitisinona, que é importado da Suíça e custa cerca de R$ 100 mil a caixa. Mas a medicação só foi suficiente para dois meses e acabou em janeiro. “Avisamos que veio bem menos do que foi pedido, mas até agora não tivemos resposta.”
Para que a filha não ficasse totalmente sem o remédio, a mãe criou uma página na internet e conseguiu alguns comprimidos doados, que acabaram nesta semana.
“Ela está tomando doses bem menores da recomendada, e o fígado aumentou.” A doença pode levar à falência hepática e renal. O ministério defende reavaliação médica.
Segundo o advogado Paulo José de Morais, do Instituto Arte de Viver Bem, situações de descumprimento de decisões judiciais por gestores públicos têm se tornado frequentes. “Eles têm esticado a corda. Os pacientes dependem desses medicamentos para viver. Ao negá-los, aplicam uma pena de morte.”
Para o desembargador João Pedro Gebran Neto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, se por um lado a autoridade das decisões judiciais não pode ser desafiada, por outro há dados práticos, como prazo para fornecimento de um remédio importado ou para realização de licitação, que deveriam ser considerados pelos juízes.
Segundo Gebran, há ainda outra questão recorrente em que pequenos municípios são demandados a prestar um serviço, quando a obrigação é do Estado ou da União. “Essas questões precisam ser bem compreendidas pelo Judiciário, não se podendo distanciar direito e realidade.”
Porém, quando há urgência no cumprimento das decisões, ele diz que é preciso mais esforços da administração e maior rigor judicial. “Direito à saúde é matéria extremamente delicada, contrapondo dramas individuais e perspectivas coletivas.”
Gebran lembra que ainda não foi construída jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal deve concluir neste ano o julgamento de dois processos em que decidirá sobre acesso de drogas de alto custo no SUS por via judicial.
Segundo o procurador Arnaldo Hossepian, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), até o final do ano será lançada uma plataforma online que subsidiará juízes na tomada de decisões com base em evidências científicas.
AUDITORIAS
O Ministério da Saúde realizará auditorias em casos em que a União é obrigada a fornecer medicamentos de alto custo por meio de liminares.
Em uma delas, que envolveu 414 casos de fornecimento do remédio Soliris (eculizumab), que custa R$ 1,16 milhão por paciente ao ano, o ministério descobriu que 13 pacientes já tinham morrido, 33 não foram localizados ou não moram no endereço que consta na ação e seis se recusaram a dar informações.
Além das auditorias, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, afirma que recorrerá de todas as decisões judiciais em que não há um laudo médico subsidiando a demanda.
“Decisões que não estejam devidamente suportadas, receitas sem laudos médicos, nós não vamos cumprir, vamos devolver para o juiz”, disse Barros à Folha.
Segundo ele, existem muitos casos em que o advogado ingressa com a ação apenas com uma receita do médico. “Não tem um laudo médico que comprova se a pessoa tem mesmo aquela doença e precisa daquele remédio.”
Sobre o descumprimento de decisões judiciais, Barros afirma que isso pode decorrer de problemas de logística que surgem pela determinação da entrega da droga em tempo exíguo. “O custo da judicialização em logística muitas vezes é superior ao próprio medicamento.”
Outra medida que Barros diz que adotará para “disciplinar” a judicialização será a criação de receituário especial em que o médico do SUS terá que justificar a necessidade da droga que não esteja na lista do SUS e porque as disponíveis não servem.
Ele afirma que o ministério adotará em todo o país um software já usado no Estado de São Paulo, que controla e gerencia com mais eficiência as ações judiciais.
O sistema paulista verificou, por exemplo, 34% dos medicamentos requeridos já constavam da lista do SUS. Porém, os pacientes solicitavam versões produzidas por outras empresas ou com algum incremento tecnológico.
Segundo David Uip, secretário de Estado da Saúde, os entraves para o cumprimento das decisões judiciais para fornecimento de remédios vão desde falta de recursos até pedidos inespecíficos que dificultam o cumprimento das decisões. “Há ações que pedem derivados de maconha, mas não dizem qual dos três tipos devo importar.”
Segundo Uip, que já teve ao menos quatro mandados de prisão por descumprimento de decisão judicial, a questão é que o juiz pensa em casos individuais, e os gestores precisam pensar no coletivo.
“Eu, como pai e avô, sofro quando vejo uma criança doente. Mas não temos um orçamento separado para a judicialização. Ele é contado centavo a centavo.”
A judicialização da saúde
O que é judicialização da saúde?
É a tentativa de obter medicamentos, exames, cirurgias ou tratamentos, aos quais os pacientes não têm acesso pelo SUS ou pelos planos privados, por meio de ações judiciais
Quando essa prática começou?
Na década de 1980, com a constitucionalização dos direitos sociais e as dificuldades do Estado em prover serviços. O envelhecimento da população e os cortes no orçamento da saúde contribuíram para o aumento dos casos
O que dizem os governos?
– O volume de ações judiciais é crescente e tem causado desequilíbrio nas contas
– São gastos valores altos para beneficiar poucos pacientes
– Há distorções em algumas solicitações –em SP, por exemplo, já houve pedidos de lenços umedecidos e até remédio para cachorro
O que dizem os pacientes?
– A Constituição garante o direito à saúde a todo brasileiro
– Pacientes pobres ou com doenças raras, cujo tratamento só está disponível no exterior, ficam desamparados
– SUS demora demais para incorporar tratamentos, e Anvisa, para analisar novos medicamentos