fonte: Folha de SP

por Claudia Collucci

Após uma década de escalada na judicialização da saúde, que já consome R$ 7 bilhões ao ano da União, Estados e municípios, governos e Judiciário se organizam para implantar em todo país plataformas que ajudem gestores e juízes a tomarem decisões amparadas na medicina baseada em evidência, conforme reportagem na Folha deste domingo.

Mas, afinal, o que é medicina baseada em evidência? O médico cardiologista Luis Correia, especialista neste assunto, nos enviou uma interessante reflexão sobre o tema. Ele usou como exemplo um caso citado da reportagem, o do menino Gabryel, 4, que tem mucopolissacaridose tipo 2, doença genética que impede o processamento de moléculas do açúcar e pode ser fatal. Sem terapia, apresenta problemas articulares e respiratórios.

A família buscou há dois meses na Justiça um medicamento que custa R$ 1,18 milhão por paciente ao ano e pode, em tese, fazer com que a doença pare de avançar. A liminar foi deferida, mas a União ainda não entregou a droga. A seguir, a análise de Luis Correia:

Medicina baseada em evidências poderia (ou deveria) ser chamada de medicina baseada em valor. No valor das coisas. O valor de um tratamento está na veracidade de sua eficácia e também no tamanho do efeito de sua eficácia.

Terminando de ler seu artigo me motivei a ir no “Uptodate” [base de informações médicas baseada em evidência] e pesquisar a respeito da eficácia do tratamento enzimático para mucopolissacaridose 2 em crianças.

Devemos nos perguntar: há benefício? Que tipo de benefício? E principalmente, qual a magnitude do benefício? A magnitude do benefício é sempre muito importante, pois tudo tem um custo. Custo para o paciente ao ser submetido a um tratamento e custo monetário ao sistema de saúde.

O Uptodate cita uma revisão sistemática da Cochrane [rede global independente de pesquisadores que faz revisões sistemáticas em busca da melhor evidência científica] muito elucidativa, pois mostra que há apenas um ensaio clínico randomizado, pequeno (96 pacientes). Este tipo de trabalho tem o valor “exploratório”, mas não “confirmatório” (ou seja, tem nível de evidência baixo).

Minha primeira conclusão, há incerteza quando a eficácia. Segunda conclusão, não há dados sobre mortalidade. Portanto, não há respaldo no uso de termos como “pena de morte” [pelo atraso no fornecimento do remédio], nem “dependem [do remédio] para sobreviver”. Há incerteza.

O trabalho mostra o efeito do tratamento, comparado corretamente a placebo. Houve melhora da capacidade da criança caminhar. Mas agora vem a pergunta mais importante. De quanto foi essa melhora (tamanho do efeito)? No teste de caminhada de seis minutos (6-min walk test), antes do tratamento, a criança caminhava 400 metros em média. Após o tratamento, a criança aumentou sua capacidade de caminhar em 40 metros.

Qual a magnitude do benefício desse tratamento? 40 metros em quem anda 400 metros muda a vida da pessoa? Deixo a questão em aberto.
Quanto a outros benefícios, não foram testados. Portanto, fica a incerteza.

Na difícil questão que você levanta, há três vieses típicos da mente humana: (1) aversão pela incerteza (subestimamos nossa incerteza ou nem mesmo a reconhecemos); (2) superestimativa do efeito dos tratamentos: o que tem alguma eficácia passa a ser uma panaceia. Porém, em geral, a magnitude dos tratamentos voltados para melhoria de prognóstico é modesta; (3) Pensamento antieconômico: como demonstra o psicólogo Dan Ariely (recomendo o livro “Predictable Irrationality”), a mente humana não tem uma natural racionalidade econômica. Friso que quando falo em economia não me refiro apenas ao monetário, embora no caso desta doença o custo monetário seja considerável.

Nada do que coloco aqui tem valor frente ao sofrimento dos pais e à sensação de alívio (mesmo que parcialmente fantasioso) que o uso dessas drogas oferecem a eles (isso também é valor). Ou seja, o problema não é simples, porém, o que coloco aqui (medicina baseada em valor) deve ser considerado nessa excelente discussão que você levanta.

Considero de fundamental importância essa discussão levantada por Correia. Ainda há muita ilusão (e oportunismo) em torno das novas tecnologias em saúde. É preciso separar o joio do trigo. Ou seja, definir por critérios objetivos, validados cientificamente, quais tecnologias agregam de fato valor e merecem ser incorporadas aos sistemas de saúde e quais não passam de marketing da indústria da saúde.

Com orçamentos em saúde cada vez mais apertados, governos do mundo todo têm hoje essa questão como prioritária. Nós, sociedade brasileira, além de enfrentar esse assunto como gente grande também precisamos fazer outra lição de casa que há muito está sendo postergada: discutir sobre qual sistema de saúde queremos ter e o que é possível ser coberto por ele, já que o “tudo para todos” não passa de uma grande utopia.