fonte: O Globo

A luta de um casal inglês para manter vivo seu filho, o bebê Charlie Gard, morto na última sexta-feira vítima de uma doença rara quando estava prestes a completar 1 ano, fez a balconista Rosana da Silva, de 33 anos, rememorar os últimos meses que viveu com seu caçula Samuel Nicholas. Ele morreu em novembro passado, vítima de câncer, aos 11 anos, em seus braços. A criança estava internada em São Paulo num “hospice”, que trata apenas de forma paliativa crianças em estado terminal. O pequeno Charlie havia sido levado, por determinação da Justiça inglesa, para um local que presta o mesmo atendimento.

— Ele descansou em um lugar de paz — emociona-se Rosana, mãe ainda de uma adolescente de 14 anos, moradora da Baixada Santista.

O “hospice”, ou hospedaria, é um local focado em proporcionar conforto ao paciente e familiares em seus momentos finais, quando todas as chances de cura foram esgotadas. Esse tratamento paliativo vai desde alívio de dor a apoio emocional, proporcionados por uma equipe multidisciplinar. Foi o que aconteceu com o menino Samuel. Sem expectativas de cura após três anos lutando contra vários tumores, ele decidiu, junto com a família, ir para o Hospice Francesco Leonardo Beira, o primeiro pediátrico do país, inaugurado em 2013.

A entrada da casa, no alto de uma rua no bairro periférico de Itaquera, na zona oeste de São Paulo, lembra uma cidadezinha do interior: há plantas, lago com peixes e até tartarugas. O sol ilumina quase toda a parte interna. Tem ainda uma hidromassagem, de onde se vê um jardim. Trinta pacientes passaram pelo local nos últimos quatro anos.

Rosana conta que a equipe médica da Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer, chamada de Tucca, responsável pelo Hospice, deu liberdade para a família ouvir outros especialistas antes de colocar o menino no tratamento paliativo. Ela fala, porém, que o filho sofria muito com as sessões de quimioterapia. Partiu de Samuel a vontade de ir para o local, num momento marcante para a família. “Mãe, não chora, ou eu vou chorar também”, disse ele, agarrado a Rosana.

O ambulatório do Tucca atende de 50 a 60 pacientes por dia, de recém-nascidos a jovens com 18 anos de idade. Segundo a vice-presidente da instituição e coordenadora da equipe multidisciplinar do Departamento de Oncologia Pediátrica do Hospital Santa Marcelina, Claudia Epelman, há uma resistência inicial contra o “hospice”. Os pais, segundo ela, chegam a tratar o espaço como “a casa da morte”, imagem desconstruída na primeira visita, garante:

— A gente prioriza que a criança morra em casa, porque, se não há chance de cura, ela não merece passar pelas restrições que a internação leva. Por isso, a ideia do “hospice”, que tem o calor da casa e o acolhimento do hospital.

Roque Bernardino de Lira, de 44 anos, resistiu em deixar ali a filha Maria Verônica, de 17 anos, após a notícia de que a caçula não respondia mais aos tratamentos contra um tumor no cérebro. Ele fala que procurou “até plantas da natureza” para cuidar da menina na casa da família, na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, mas “nem toda morfina curava sua dor”. Havia ainda outro empecilho: a adolescente já não andava mais e o acesso à casa simples do feirante se dava por “uma grande escadaria”:

— Pelo menos no “hospice” não a deixaram sofrer. Na semana em que faleceu, em fevereiro do ano passado, ela ainda me abraçou e disse: “Você é o melhor pai do mundo”. Fiz massagem em seu pé, rezei e ela se foi.

O atendimento no Hospice Francesco Leonardo Beira é gratuito e tem capacidade de atender três pacientes por vez. São três quartos com suíte e todo conforto para uma família inteira: há cama, bicama e sofá-cama. Na cozinha, familiares têm liberdade de preparar o prato que desejarem. Já houve até eventos de aniversário com churrasco. Lá, as visitas não têm hora marcada, nem limite de pessoas. A área de lazer para crianças é repleta de brinquedos e há um vídeo game. Tem também um posto de enfermagem e uma sala religiosa disponível. O gasto de R$ 50 mil mensais é bancado por doações.

O nome é uma homenagem ao filho de seu primeiro doador, o empresário Waldir Beira Júnior. Francesco faleceu aos 11 anos, após nove de luta contra um tumor no cérebro, em casa ao lado dos pais.

Samuel ainda foi para casa, onde durante quatro meses realizou sonhos como entrar em campo de futebol com o atacante Ricardo Oliveira numa partida do Santos, seu time de coração, na Vila Belmiro. Sem suportar as dores, voltou para o “hospice” em outubro do ano passado:

— Ainda pude cantar segurando a mão dele, que chorou e depois partiu — conta a mãe.

BRASIL TEM APENAS DEZ INSTITUIÇÕES DO TIPO

Um levantamento feito pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos indica que o Brasil tem hoje cerca de 10 “hospices”, além de 127 equipes especializadas em cuidados paliativos em diferentes hospitais. O vice-presidente da academia, André Santos, diz que esse tipo de tratamento não é regulamentado e o tema “ainda começa a engatinhar” no país.

— O que está acontecendo aqui são iniciativas de hospitais que adotam a filosofia de “hospice”. Precisamos falar sobre como morrer de forma digna. Regulamentar facilitaria, por exemplo, a cobertura por planos de saúde e evitaria a abertura de clínicas particulares que não praticam esse tipo de cuidado corretamente — atenta Santos.

A equipe de cuidados paliativos é responsável por fazer a ponte entre a família do paciente e os médicos, quando essa relação já está desgastada. Segundo Santos, esse grupo busca humanizar o atendimento e tenta chegar a um bem comum e confortável para todos — paciente e familiares — nos momentos mais difíceis.

— Diferentemente da Inglaterra, o Brasil não aciona a Justiça para casos como o do bebê Charlie Gard, mas quando encontra indícios que caracterizam maus-tratos ao paciente. Já precisei fazer uma traqueostomia numa criança e os pais não concordavam. A equipe de cuidados paliativos interviu com suporte e orientação — lembra o médico.