fonte: O Globo
Entrar pelos corredores do Hospital Municipal Raphael de Paula Souza, em Curicica, pode parecer uma incursão por um mausoléu abandonado. São setores inteiros desertos, consultórios fechados, paredes e tetos carcomidos por infiltrações. Para onde se olha, há evidências de que a unidade definha, apesar de ser considerada uma referência para a internação em casos graves de tuberculose. Uma doença que, como O GLOBO mostrou no último domingo, deixa mais mortos no Rio do que em qualquer outro estado brasileiro — foram cinco óbitos para cada 100 mil habitantes em 2016. E que, enquanto segue o rastro de problemas sociais como as moradias precárias em favelas, denunciam médicos e outros profissionais, também mata devido ao desmonte da rede de saúde pública que deveria atender justamente os pacientes em estado mais grave.
— Hoje, a maior parte dos tratamentos acontece nas unidades básicas de saúde. Há casos, no entanto, em que é necessária a internação. Ao mesmo tempo que as pessoas morrem com tuberculose em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), os hospitais de referência perderam leitos e sofrem com a falta de infraestrutura e de recursos — afirma o médico tisiopneumologista Alexandre Milagres, que trabalhou 36 anos no Raphael de Paula Souza.
MULTIRRESISTÊNCIA AOS MEDICAMENTOS
Ele lembra que o hospital foi criado em 1952, para tratar os pacientes de tuberculose, concebido até arquitetonicamente para esses atendimentos, com um único andar, corredores amplos e áreas bem ventiladas e iluminadas por luz natural. No entanto, desde 1999, diz ele, quando a gestão do hospital passou do governo federal para o município do Rio, a unidade entrou num processo de deterioração.
Nesta segunda-feira, ao circular pelo hospital, a equipe do GLOBO constatou que o ambulatório de infectologia e as áreas onde são feitos os atendimentos de saúde básica seguem movimentadas e em pleno funcionamento. Mas basta seguir pelos pavilhões da unidade para encontrar estruturas sucateadas. Há salas fechadas com portas presas com tábuas pregadas à parede, antigos consultórios vazios e lugares que se assemelham mais a um cenário de filme de terror. “Antes, era fácil conseguir atendimento para tuberculose aqui. Hoje, é muito difícil”, dizia uma funcionária da unidade.
— O hospital segue com sua expertise tanto no tratamento das decorrências da doença quanto na associação entre tuberculose e HIV. Mas, se tinha 1.500 leitos quando foi criado, hoje tem pouco mais de 30, e a pneumologia se resume a dois, três médicos. Isso num quadro em que o Rio é campeão nacional da tuberculose multirresistente, muitas vezes uma consequência de tratamentos malfeitos, em que os pacientes desenvolvem resistência aos medicamentos existentes. Alguns desses pacientes têm lesões pulmonares graves e, às vezes, requerem internação para oxigenoterapia — afirma Milagres.
Neste caso específico, atualmente, a unidade de referência para as internações na cidade do Rio é o Hospital Estadual Santa Maria, em Jacarepaguá, com pouco mais de 90 leitos. A situação dele, no entanto, não difere muito da do Raphael de Paula Souza. Há anos, os funcionários vêm denunciando que a situação é crítica, com falta de insumos, medicamentos, luvas e máscaras de proteção respiratória.
— O abandono no Santa Maria é o mesmo. É preciso uma política pública, de estado e município associados, para readaptar esses hospitais, além de criar leitos em outras unidades adequados ao atendimento. Hoje, parte dos leitos que havia no Hospital Estadual São Sebastião, fechado no Caju, por exemplo, foi transferida para o Hospital dos Servidores, mas num lugar completamente fechado e inapropriado — afirma o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), presidente da Frente Parlamentar em Apoio ao Combate da Tuberculose da Câmara dos Vereadores, que tratará do assunto numa audiência pública este mês.
DENÚNCIA AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Ele ressalta ainda que, de acordo com números obtidos pela Frente junto à Secretaria municipal de Saúde, vêm aumentando na cidade do Rio os casos detectados de tuberculose multirresistente. Em 2013, a taxa de incidência foi 0,9 caso a cada 100 mil habitantes. Taxa que aumentou para 1,5 por 100 mil em 2014 e chegou a 1,8 por 100 mil em 2015.
A conjuntura de precariedade nos hospitais e gravidade dos casos, segundo Jorge Darze, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenan), levará a entidade a encaminhar uma denúncia ao Ministério Público estadual para que unidades como o Raphael de Paula Souza e o Santa Maria, assim como o Ary Parreiras, em Niterói, sejam inspecionados.
Procurada para comentar a situação do hospital de Curicica, a Secretaria municipal de Saúde não se pronunciou.