fonte: O Globo
Quando os agentes de saúde chegam, D. sai transtornada do casebre em que vive, uma maloca escura, com menos de um metro de altura, feita com restos de tudo. Ela grita e chora, porque a amiga, que mora no mesmo barraco, rasgou o braço com um pedaço de vidro numa tentativa de suicídio. Uma médica e dois residentes de enfermagem precisam socorrer a mulher, ensanguentada no chão. Mas, antes de levá-la para a Clínica da Família de Manguinhos, entregam uma cartela de comprimidos a D., que abraça a amiga, vira para o lado e começa a tossir e a expelir muco. Eram os sintomas do que, na verdade, tinha levado a equipe até ali, à beira da Avenida Brasil: resquícios da tuberculose da qual D. tenta se curar. É uma das mais antigas e mortais doenças infecciosas da história da Humanidade, que resiste e se alimenta de problemas sociais do Rio, como moradias precárias, falta de saneamento e de assistência médica de qualidade.
A tuberculose — que teve seu auge na Europa, nos séculos XVIII e XIX — é um drama que ainda atinge, todos os anos, mais de 10 mil pessoas no Estado do Rio. Segundo o Ministério da Saúde, a taxa de incidência da doença, no ano passado, chegou a 63,82 casos por 100 mil habitantes no estado. É a segunda maior do país, atrás apenas do Amazonas (68,2).
Na capital, ao contrário do que poderia se imaginar, o desenvolvimento não reduziu os números. Dados obtidos junto à Secretaria municipal de Saúde (SMS) pela Frente Parlamentar em Apoio ao Combate da Tuberculose da Câmara dos Vereadores indicam que foram 99 casos por 100 mil moradores da cidade em 2016. E a situação piorou. Em 2014, por exemplo, foram 90 registros por 100 mil moradores. A média nacional é de 33,7 por 100 mil.
— É uma doença social. O Rio é uma área endêmica da tuberculose, que se agrava nas comunidades devido às péssimas condições de moradia e de alimentação das pessoas — afirma Marcelo Soares Costa, enfermeiro do Consultório na Rua da Clínica da Família Victor Valla, em Manguinhos.
É a equipe dele a responsável pelo atendimento aos moradores de rua da região de Manguinhos e de toda a Área de Planejamento 3.1 — uma das dez da cidade —, que inclui a Maré e suas cracolândias, e que tem o menor percentual de cura e o maior índice de abandono do tratamento da doença no Rio. Também é esse grupo de agentes de saúde que, na última quarta-feira, saiu para fazer a entrega dos medicamentos a D. Um esforço para minimizar as consequências do abandono do tratamento, gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e que deve durar, no mínimo, seis meses.
Principalmente nas adensadas favelas cariocas, assim como nos presídios e entre a população de rua, a doença se alastra. Em duas das comunidades mais conflagradas e abandonadas pelo poder público, as taxas são mais do que o triplo das de outras regiões da cidade. Em Manguinhos, por exemplo, chega a 337,4 por 100 mil habitantes. E na vizinha Jacarezinho, que tem população de 39.041 moradores e registrou 130 casos em 2016, a proporção também é assustadora: 332,9 casos por 100 mil. Um quadro que faz a região ser uma das que mais preocupam a Secretaria municipal de Saúde, já que os números de incidência de tuberculose superam os de países países africanos, como Congo (324) e Serra Leoa (307).
As duas favelas deixaram para trás a Rocinha, antes conhecida como o maior foco de tuberculose do país, com 455 casos por 100 mil moradores em 2001 e taxas que se mantiveram acima dos 300 casos por 100 mil até recentemente. A favela de São Conrado, que atravessa uma turbulência em segurança, assiste à doença recuar. Um resultado que pode ser atribuído não só ao trabalho das equipes de saúde, mas também a obras como as do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que abriram ruas e ergueram prédios onde antes havia o “beco da tuberculose”, uma alusão ao fato de que a doença cresce em ambientes lúgubres e confinados. Hoje, indicam os números da Frente Parlamentar, são 179 doentes por 100 mil habitantes.
Apesar disso, a Rocinha ainda faz parte de um cenário que está longe de ser o ideal. Assim como Manguinhos, Jacarezinho, Rio das Pedras, Cidade de Deus e as favelas dos complexos da Maré e do Alemão, centenas de casas precárias, amontoadas e sem ventilação, que mal recebem a luz do sol, continuam a oferecer risco, principalmente se considerado que, nesses lugares, o saneamento é quase inexistente. O caso é tão grave que, na Rocinha, a prefeitura prometeu abrir janelas ou basculantes em pelo 700 casas.
Dentro de uma mesma área, os números dançam de acordo com a intensidade do drama social. Enquanto as equipes dos atendimentos em domicílio na região de Manguinhos têm, em média, cinco pacientes em tratamento de tuberculose, a de Marcelo Costa, que atende moradores de rua, cuida de 29. O enfermeiro lembra que a população sem-teto tem até 67 vezes mais chances de contrair a enfermidade. São doentes difíceis de serem acompanhados, e alguns somem. No mesmo dia em que os agentes encontraram D. completamente alterada, eles perderam de vista uma senhora recém-diagnosticada, que costumava se abrigar próximo à Fiocruz, mas que desapareceu e está sem remédios. A violência também dificulta que os agentes visitem pacientes em dias de operações policiais ou quando há confrontos.
ONDE MAIS SE MORRE
Com tanta dificuldade, a letalidade é alta. O Rio é o estado do país que tem o maior coeficiente de mortes pela doença: foram cinco por grupo de 100 mil habitantes em 2016. E o município do Rio, segundo o Ministério da Saúde, é a segunda capital do Brasil com maior taxa de óbitos: 6,2 por 100 mil habitantes ano passado, atrás apenas de Recife, em Pernambuco (7,7/100 mil).
— Investimos muito e avançamos na atenção primária de saúde, onde são diagnosticados 76% dos casos de tuberculose. Mas não basta. A fuga do tratamento ainda é grande, muitas vezes por falta de informação. A escalada da doença na cidade do Rio, nos últimos anos, não é culpa do sistema de saúde, mas das condições de vida das pessoas. Envolve urbanismo, saneamento, políticas de habitação e assistência social — avalia o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), presidente da Frente Parlamentar que trata do assunto na Câmara e que convocará, no fim de outubro, uma audiência pública sobre o assunto.
Coordenador do Observatório Tuberculose Brasil, vinculado à Ensp/Fiocruz, Carlos Basilia observa que, para combater a doença, é preciso melhorar a atenção básica, e também intensificar intervenções urbanísticas e em moradias, ampliando ruas e reformando casas. Ele destaca também que é imprescindível melhorar o nível de informação sobre a doença. O estigma que recai sobre os pacientes, diz ele, ainda é enorme. Apesar disso, a tuberculoso tem cura e, com 15 dias de tratamento, o doente já deixa de transmiti-la.
— É uma doença que tem um custo catastrófico e um impacto negativo na economia familiar dos que adoecem, por causa do preconceito. Há quem ache que é preciso incinerar roupas e móveis dos pacientes. Há relatos de pessoas expulsas de comunidades pelo tráfico e de trabalhadores demitidos após o período de licença. As violações dos direitos são muitas — afirma Basilia.
Moradora da Rocinha, a agente comunitária Rita Schmit viveu tudo isso na pele e hoje ajuda outras pessoas. Ela, que perdeu a mãe de tuberculose, teve a doença duas vezes. Se dedica aos doentes com deficiência, que são mais vulneráveis por passarem muito tempo dentro de casa e concentram o maior índice de reincidência — na Rocinha, alguns tiveram tuberculose seis vezes. Ela diz que os imóveis do PAC salvaram vidas:
— Quem foi para esses prédios nunca mais teve tuberculose. Batalho há muito tempo por um projeto de moradia saudável. Não sou médica, mas a vida foi me especializando. Percebi claramente, no meu corpo, que melhores condições de sobrevivência salvam.