fonte: Estadão
por Ruth Manus
Pela primeira vez na vida atrasei um prazo. Aconteceu na semana passada. Tinha prometido, por iniciativa minha, que entregaria o livro ao meu editor português até sexta-feira, dia 17. Mas tudo saiu fora do previsto e me flagrei, na madrugada de quinta para sexta, dormindo em frente ao computador, como se algo razoável pudesse ser escrito naquelas condições.
Eu odiei perder o prazo. Fiquei com raiva de mim- e não da minha sobrecarga de trabalho-, culpei minha falta de organização- e não os imprevistos que aconteceram naquela semana. Mas vi que não havia alternativa. Cometi o sacrilégio de entregar na segunda feira, dia 20, algo que deveria ter sido entregue na sexta, 17. E a pior parte: o editor nem percebeu o atraso.
Percebi, incomodada, que meu pecado não foi assim tão grave perante os olhos dos outros. Mas ele continuou sendo imperdoável para mim. O grau de exigência que temos com nosso desempenho profissional atinge níveis muito mais altos do que a exigência que temos conosco perante nossa família, nossos amigos ou nosso corpo. Nunca, nunca achamos que fazemos o bastante.
Quando eu tive um esgotamento de stress, aos 23 anos, uma médica me disse “você não pode ser sempre a mais responsável de todos. Às vezes é preciso falhar, perder um prazo, negar um pedido no trabalho. Porque quanto mais responsável você for, mais responsabilidades vão recair sobre você”. Eu achei interessante, pensei muito a respeito e, obviamente, não fiz nada do que ela disse.
Somos, mais uma vez, uma geração bizarra, que parece achar natural perder um jantar com os amigos ao invés de atrasar um prazo. Que não vê problemas em faltar no aniversário de alguém da família, mas que vê todo problema em pedir mais um dia para entregar um trabalho. Que adia a consulta médica, o exame de sangue e a academia, mas nunca irá adiar um compromisso de trabalho. Que raio de prioridades estabelecemos na nossa vida?
Obviamente não estou falando de prazos fatais, cujo atraso possa prejudicar clientes, colegas ou outras pessoas. Mas sabemos que há prazos pelos quais não precisamos surtar, nem sacrificar nosso corpo ou nossos relacionamentos. Por que será que estabelecemos são esses os compromissos que merecem sempre o primeiro lugar na nossa vida?
Um belo dia aceitamos mais trabalho do que deveríamos. E cumprimos. Depois aconteceu de novo. Outra vez demos conta. Na terceira vez ninguém questiona se a gente pode, ninguém pergunta se a gente consegue. As coisas simplesmente caem no nosso colo e cabe a nós solucioná-las. Passamos a acreditar que o sacrifício é o normal e que a vida normal é uma aberração.
É preciso ter cuidado. A vida não pode acontecer sempre nos picos, no extremo e na ilusão de que daqui a pouco tudo vai melhorar. Que talvez o trabalho alivie, que talvez dê pra ter uma vida normal. Para que as coisas mudem a gente precisa alterar alguma coisa. Atrasar um prazo talvez ajude. Dizer um não talvez ajude. Não ser sempre impecável talvez ajude. Só não podemos achar que o normal é adormecer na frente do computador, enquanto amaldiçoamos nossa “baixa” produtividade.