fonte: O Globo

por Lígia Bahia professora da UFRJ

A Câmara dos Deputados mantém planos de saúde com cobertura ilimitada, mas tem sido o espaço privilegiado para que as empresas aprovem uma lei que reduz as garantias assistenciais e aumenta as mensalidades para idosos. Caso aprovada, será uma regra que em nada afeta quem a elaborou. Atingirá os segmentos populacionais que já experimentam diversas dificuldades para obtenção de atendimento. A proposta de lei relatada pelo deputado Rogério Marinho do (PSDB-RN) — baseada nas sugestões de um setor empresarial muito lucrativo — pretende ajustar as normas legais da saúde à crise econômica. Ou seja, manter e ampliar os retornos financeiros de empresas privadas, apesar do desemprego e da redução da renda.

As normas propostas permitem a comercialização de contratos “segmentados”, isto é, que atenderão parcialmente a alguns problemas, se houver oferta disponível, e autorizarão incrementos significativos nos preços para os mais velhos. Como não é possível prever qual será a necessidade futura de saúde, o plano restritivo pode não servir para o que quer que seja. Uma pessoa que precise de internação com cuidados intensivos e exames especializados e adquira um plano “segmentado” de uma cidade que não tenha o serviço, terá que recorrer ao SUS ou pagar a conta do próprio bolso. Quem for longevo vai arcar com gastos progressivos, exatamente quando a capacidade de encontrar novas fontes de renda diminui.

O deputado (e seus parentes) — que trata a saúde como uma coisa qualquer, passível de compra de procedimentos selecionados, com preço e qualidade diferenciados — tem direito a quatro alternativas assistenciais: o Departamento Médico da Câmara (Demed), organizado com pessoal próprio; o plano de saúde (Pró-Saúde) que inclui rede credenciada e reembolso para livre escolha; e o SUS. Integrantes da Câmara dos Deputados pagam por um contrato familiar R$ 322 por mês e 25% das despesas realizadas. Ex-deputados pagam uma contribuição, independente da faixa etária, de R$ 1.100,16.

Em meio à epidemia de zika, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, assinou ato (Ato da Mesa nº 35, de 23/6/2015) tornando mais simples os pedidos de reembolso. Para despesas cujo valor seja de até R$ 50 mil, basta uma deliberação do segundo vice-presidente da Câmara. Entre 2014 e 2015, o gasto com as despesas de saúde com deputados, servidores e dependentes subiu 146%. Em 2012, a despesa per capita com o plano da Câmara foi R$ 7 mil per capita (segundo o relatório de auditoria contábil e operacional), mais de sete vezes os gastos com o SUS.

No ano passado, o deputado Rodrigo Maia, um dos apoiadores da nova lei dos planos, aprovou a inclusão de filhos e enteados acima de 21 anos no plano da Câmara, mediante a contribuição de R$ 305 (entre 21 e 28 anos) e R$ 423 (29 a 33 anos). O parlamentar parece entender que os jovens ajudam os planos. Disse que é “salutar” a permanência de filhos adultos no plano exclusivo para deputados e considera positiva para as empresas a atração de clientes para contratos com restrição de cobertura. Quanto aos idosos, repetiu a propaganda do relator, vestindo no aumento cumulativo e progressivo até 80 anos a fantasia de parcelamento.

Assistência cara — financiada com recursos públicos, sem barreiras de acesso, em unidades de saúde exclusivas e prestigiadas — para políticos sensíveis apenas aos apelos empresariais impede que os reais desafios da saúde sejam pautados pelo Congresso Nacional. O mesmo Poder Legislativo que estabeleceu regras generosas para a atenção à saúde de seus integrantes tem votado, desde 2012, sucessivos cortes de gastos para o SUS.

Em um ano pré-eleitoral, o debate sobre o orçamento para a saúde pública deslocou-se do Parlamento e do Poder Executivo para o STF. O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o direito à saúde reclama prestações positivas do Estado que não podem ser negadas mediante omissão abusiva.

Essa inversão de atribuições entre poderes republicanos e “a omissão abusiva” de parlamentares diante do sofrimento da população põem de cabeça para baixo qualquer perspectiva de igualdade perante a lei. A vida de uns vale por muitas e a da maioria, quase nada. Deve ser esse o fundamento moral que justificou o recente atendimento do ministro Ricardo Barros (deputado do PP de Santa Catarina e principal incentivador da lei dos planos sem cobertura) em um renomado hospital paulista. Enquanto isso, pacientes do SUS jovens e idosos com neoplasia, que buscaram incessantemente tratamento e não conseguiram, passam diariamente a estágios muito avançados da doença e perdem chances de sobrevivência.

A velha sugestão liberal de organização social “cada um conta por um, ninguém por mais do que um” e a inscrição do direito à saúde na Constituição não atendem aos interesses de empresários do setor e seus adeptos. Agentes de mercado na saúde não respiram sem intervenção governamental. Seus representantes participaram em bloco de todas as audiências públicas para a elaboração da nova lei dos planos. O resultado, ainda provisório, é uma proposição com a cabeça, tronco e membro das empresas e nenhum traço do DNA do conhecimento e das necessidades de saúde.