fonte: BBC Brasil

Sexta-feira à noite, um grupo de profissionais da saúde se reúne no setor de pediatria do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, para debater um caso difícil: uma paciente de 16 anos, em tratamento para um câncer há um ano, precisará amputar a perna esquerda.

A enfermeira Maria Lúcia de Andrade Santos é a encarregada de conversar com a adolescente que, em prantos, protesta contra a decisão. Bailarina desde os cinco anos, ela treinava para uma modalidade olímpica e vê naquela notícia o fim de um sonho. A enfermeira a consola, mas é firme em explicar a importância do procedimento. “Quem sabe essa é uma nova oportunidade, uma tentativa para você ficar bem”, argumenta.

O caso acima, felizmente, é uma simulação, mas representa situações corriqueiras em hospitais brasileiros. Profissionais da saúde, além de dominarem conhecimentos imprescindíveis para salvar a vida dos pacientes, precisam com frequência comunicar mortes inesperadas, eventos adversos e opções difíceis de tratamento.

Gerações de médicos aprenderam o ofício de comunicar más notícias na prática, com tentativa e erro. Mas, nos últimos anos, técnicas emprestadas da dramaturgia, do cinema, da literatura e da aviação os têm ajudado a demonstrar mais empatia e solidariedade na hora de dizer a verdade aos pacientes e minimizar a dor de quem recebe a notícia.

“Há médicos considerados frios, insensíveis, que não olham nos olhos do paciente. Você vê as pessoas se queixarem, ‘me deu a notícia na porta da UTI’. Ou há o médico que envia um profissional da equipe para dar a notícia e nem mesmo vai falar com o paciente. Não é ser simpático – é ser empático, se colocar no lugar do paciente”, afirma Cláudia Bacelar Batista, professora na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituição que há alguns anos incluiu técnicas de comunicação de más notícias na grade curricular do curso.

Lágrimas de verdade e pacientes de mentira

Assim como na aviação, a Medicina tem utilizado cada vez mais simulações realísticas para treinar seus profissionais, seja em procedimentos médicos, seja para comunicar notícias ruins.

Para Batista, que leciona no eixo ético-humanístico do curso de medicina da UFBA, a teatralização ajuda a resgatar a relação empática entre médico e paciente.

“No início da Medicina, era mais fácil comunicar a má notícia porque o médico geralmente conhecia a família, estava de alguma maneira inserido naquele núcleo. Mas na medida que a prática se torna mais científica, ela se distancia das emoções”, afirma.

No hospital Albert Einstein, um centro de simulação realística é utilizado para cursos de más notícias. Atores fazem as vezes de pacientes. Há lágrimas de verdade, pulseiras e cateteres hospitalares e o script da cena é maleável – o ator precisa adaptá-lo, a depender da reação do profissional que participa da simulação.

Os profissionais de saúde aprendem na prática a lidar com reações como negação, agressividade e desespero, comuns após a transmissão de informações desfavoráveis.

Aqueles que ficam mudos e não conseguem acolher o paciente são retirados da cena antes do fim. “Não podemos reforçar experiências negativas. Essas acabam marcando mais do que o aprendizado que queremos passar”, explica Mariana Santos Alecrim Molina, enfermeira e analista de simulação realística sênior do Einstein.

“Não há receita de bolo. Mas criamos cenário e pontos de virada para treinar capacidades distintas dos alunos”, explica.

Conhecimento técnico e empatia

Além da teatralização, disseminou-se na medicina um protocolo usado inicialmente para comunicar pacientes sobre o diagnóstico de um câncer. O modelo consiste em seis etapas, cada uma correspondente a uma das letras da sigla “spikes”, como foi batizada a técnica: cenário (setting), percepção (perception), convite (invitation), conhecimento (knowledge), emoção ou empatia (emotion) e resumo (summary).

Na primeira etapa, o médico busca um ambiente onde o paciente ou seus familiares sintam-se seguros e tenta estabelecer uma comunicação horizontal, sem discurso de autoridade. “O médico evita até estar de pé, para não haver uma relação hierárquica, mesmo que inconsciente”, explica Thomaz Bittencourt Couto, médico do Centro de Simulação Realística do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, que dá cursos sobre a comunicação de más notícias.

“Sentado, olho no olho, abre-se uma relação mais igual e isso melhora a recepção das pessoas sobre uma notícia mais crítica”, acrescenta.

Na etapa seguinte, o médico busca entender o quão informado o paciente está para saber quais detalhes são necessários e quais não precisam ser repetidos. Em seguida, o profissional convida o paciente a dividir com ele quais são suas dúvidas e medos, para que possa esclarecê-los.

A quarta etapa, do conhecimento, é a comunicação da notícia, sem termos difíceis de compreender. Com a reação do paciente, espera-se que o médico demonstre empatia. Por último, o profissional faz um apanhado e busca definir próximos passos.

“Aquela notícia impacta a família, o paciente, pela vida inteira. E, se ela é mal dada, o impacto é maior”, diz Couto. Tudo é pensado para que o momento da notícia não se converta em um trauma.

Re-humanização da Medicina

Além do ensino de técnicas de comunicação, os cursos de más notícias prentendem reforçar a formação humanística dos profissionais da saúde.

De acordo com Batista, da UFBA, embora a Medicina deva ao século 20 seus maiores avanços científicos, o aperfeiçoamento da técnica trouxe consigo uma fragmentação do tratamento do paciente que, em parte, desumanizou a medicina.

“A técnica foi colocada acima de tudo. Hoje não tratamos mais doentes, mas doenças. Tratamos um fígado, mas um fígado não tem família, não tem sentimento. Por isso as escolas precisam retomar a ideia da ética e da humanidade”, aponta a médica.

Para a enfermeira Maria Lúcia de Andrade Santos, que participou da simulação realística descrita no início dessa reportagem, a experiência será lembrada quando estiver frente a frente com pacientes reais. “Foi uma atriz que me fez viver aquela sensação. Foi marcante”, diz.

Sua firmeza durante a simulação foi alvo de feedback de colegas e da própria atriz. A “paciente” disse a ela que, embora o tom assertivo passasse confiança, faltou apoio emocional.

“Ela sentiu ali o que profissionais fazem muitas vezes, que é não ouvir o desabafo do paciente. Minha tentativa de escape ali foi contra-argumentar com a paciente, eu não queria me desestabilizar. Pensei que não poderia começar a chorar e, na dúvida, tentei acalmá-la com argumentos”, explica. “Mas o feedback me mostrou que o paciente precisa ser ouvido.”