fonte: MedScape

Entre os preceitos da saúde pública adotados no país estão a universalidade e a igualdade. No entanto, dados de um trabalho apresentado no 20° Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, realizado no final de outubro, no Rio de Janeiro, mostram que a realidade, em alguns casos, está bem longe desses princípios. Ao analisar diferentes centros de tratamento do Sistema Único de Saúde (SUS), pesquisadores do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto Oncoguia, de São Paulo, identificaram grandes diferenças no padrão terapêutico oferecido para quatro tipos de câncer: pulmão, mama, colorretal e próstata.

A enfermeira Vanessa de Araújo Silva apresentou os dados do estudo, que foi publicado recentemente no Brazilian Journal of Oncology[1]. A pesquisa foi coordenada pelo oncologista clínico Dr. Rafael Kaliks, e contou com a participação da psicóloga Luciana Holtz e do advogado Tiago Matos.

Baseados na Lei de Acesso à Informação[2], os autores solicitaram informações sobre o padrão de tratamento sistêmico praticado por Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacons) e Unidades de Assistência de Alta Complexidade (Unacons) de todo o país. Foram solicitados dados dos tumores de maior incidência em mulheres (câncer de mama e câncer colorretal) e em homens (câncer de próstata, colorretal e de pulmão).

Entre fevereiro e novembro de 2016, o grupo fez 86 solicitações, obtendo respostas de 52 centros de saúde. Desse total, 18 não dispunham de diretrizes, e 34 centros enviaram pelo menos uma diretriz. Com isso, a equipe analisou protocolos de tratamento para câncer de pulmão de 29 centros, para câncer de mama de 33 centros, para câncer colorretal de 31 centros e para câncer de próstata de 33 centros.

A Região Sudeste foi a que apresentou mais centros participantes (N=20), seguida por Nordeste (N=7), Sul (N=4), Centro-oeste (N=2) e Norte (N=1).

Os autores compararam o padrão de tratamento de cada centro oncológico às Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDTs) estabelecidas pelo Ministério da Saúde (MS). O objetivo, segundo Vanessa, foi avaliar quais centros praticavam o preconizado pelo MS e quais estavam acima ou abaixo desse padrão. A imagem a seguir resume os esquemas recomendados nas DDTs e usados como padrão na pesquisa para as quatro neoplasias. A imagem é uma reprodução do artigo do Braz J Oncol[1].

Câncer de pulmão

Com relação aos tumores de pulmão, foram avaliados protocolos de tratamento para as fases de adjuvância e doença metastática para câncer de pulmão não-pequenas células. Os resultados mostram que apenas cinco dos 29 centros analisados apresentaram tratamento compatível com o sugerido pela DDT, enquanto oito foram superiores e 16 inferiores ao padrão do MS.

O Rio de Janeiro foi o estado com maior número de centros analisados (N =8) para esse tipo de tumor. No entanto, cinco centros foram avaliados como abaixo da DDT e apenas um acima da DDT. A cidade do Rio de Janeiro tem, segundo o estudo, de centros que disponibilizam apenas os quimioterápicos mais básicos (platina, taxano, etoposideo e gemcitabina) até um centro que oferece todas as medicações adotadas na saúde suplementar, com exceção de nivolumabe. São Paulo foi outro estado que mereceu destaque, de acordo com a palestrante. Dos cinco centros analisados, um esteve abaixo (disponibilizando apenas platina, etoposide, taxano e gemcitabina), três estiveram de acordo com a DDT e um esteve acima do padrão do MS, oferecendo inclusive nivolumabe ou pembrolizumabe. Recife (PE) foi um dos locais que apresentou maior homogeneidade, com os três centros analisados apresentando padrão acima do preconizado na DDT (dispondo de afatinibe, crizotinibe e bevacizumabe); uma das unidades de saúde oferece inclusive nivolumabe[1].

Câncer de mama

Para esse tipo de tumor, o estudo incluiu 33 centros de saúde. Foram considerados os tratamentos usados nas fases de neoadjuvância, adjuvância e metastática. Doze centros apresentaram diretrizes compatíveis com as DDTs, 13 tiveram um nível superior e oito foram considerados inferiores ao padrão.

Considerando os nove centros investigados no Rio de Janeiro, cinco estiveram de acordo com a DDT, dois abaixo (não disponibilizam nenhuma terapia anti-Her2), um acima (oferece lapatinibe, trastuzumabe e everolimus em câncer de mama metastático – CMM) e outro muito acima (todas as terapias anti-Her2 em CMM). Na cidade de São Paulo, onde foram avaliados seis centros, também houve discrepâncias: desde abaixo do padrão (um centro não disponibiliza capecitabina e gemcitabina) até muito acima do padrão (um centro disponibiliza todas as terapias anti-Her2, everolimus, eribulina). Em Recife, também foram identificados centros apresentando diretrizes abaixo da DDT (N=1) até outro com nível muito acima (N=1).

Câncer colorretal

No caso de câncer colorretal, foram avaliados os protocolos para tratamento das fases adjuvante e metastática. Dos 31 centros investigados, 21 foram compatíveis com a DDT e 10 se revelaram superiores.

São Paulo revelou homogeneidade, com quatro das cinco instituições analisadas apresentando nível equivalente ao padrão da DDT. Uma unidade esteve ainda acima do padrão, oferecendo cetuximabe e bevacizumabe. No Rio de Janeiro, seis das nove unidades analisadas também ofereceram tratamento de acordo com o preconizado pelo MS, e três unidades disponibilizavam tratamento superior ao padrão. Em Recife, predominaram centros acima do padrão (três em quatro analisados) e um de acordo com a DDT.

Câncer de próstata

Para essa neoplasia, foram avaliados esquemas de tratamento usados para doença metastática sensível à castração e refratária à castração. Os autores não consideraram o tratamento curativo com radioterapia associada à ablação androgênica devido à ausência de dados sobre radioterapia.

Dos 33 centros investigados, 19 tiveram diretrizes compatíveis com a DDT e 14 foram inferiores ao padrão do MS. No caso do Rio de Janeiro, a maioria dos centros investigados (6/9) oferece o padrão do MS, mas três unidades disponibilizam tratamento acima do padrão (um disponibiliza cabazitaxel, abiraterona e enzalutamida, e dois disponibilizam abiraterona). Situação semelhante foi observada em São Paulo, com cinco dos oito centros analisados apresentando o padrão do MS e três acima. Em Recife, três disponibilizam tratamento acima do preconizado na DDT e um está de acordo com o padrão médio do MS.

Segundo Vanessa, é importante destacar que a equipe usou informações de diretrizes disponibilizadas pelos centros de saúde, então não há como garantir que, de fato, as medidas listadas nos protocolos fornecidos são aplicadas na prática. Além disso, surge a dúvida com relação aos centros sem diretrizes: “será que apresentam padrão melhor do que o praticado nos centros com diretrizes?”.

A pesquisa mostrou uma variação significativa entre os centros, com unidades disponibilizando desde terapias inferiores ao preconizado até centros com nível semelhante ao da saúde suplementar.

O Dr. Kaliks afirmou durante debate após a apresentação que o objetivo do estudo não foi provar que um centro é melhor do que outro. “A disparidade que encontramos é chocante”, disse, lembrando que houve grande dificuldade para obter informações das unidades de saúde: “O advogado do Instituto Oncoguia precisou entrar em contato várias vezes e explicar a Lei de Acesso à Informação. De maneira geral, os centros não publicam as diretrizes de tratamento, mas os pacientes deveriam ter acesso aos manuais das instituições de saúde”.