fonte: O Globo

por Lígia Bahia – professora da UFRJ

As recentes decisões do STF sobre ressarcimento ao SUS e obrigatoriedade de justificar negação de coberturas de planos privados não deixam dúvidas sobre a amplitude das garantias contratuais que envolvem a saúde. Empurrar pacientes graves para o SUS foi considerado “enriquecimento ilícito”.

Julgou-se que fornecer um documento com a negação de coberturas assegura “transparência” para o cumprimento da legislação. E validou-se a regra que proíbe reajuste por faixa etária para maiores de 60 anos, com base na Constituição, que “impõe a todos o dever de auxiliar os idosos”. Segundo o ministro Marco Aurélio Mello, esse conjunto de regras tem sentido inequívoco ao afirmar que “a promoção da saúde pelo particular não exclui o dever do Estado, mas deve ser realizada dentro das balizas do interesse coletivo”.

Demorou 20 anos. Os questionamentos sobre a inconstitucionalidade da lei foram apresentados por entidades de representação das empresas de planos em 1998. Mas, finalmente, os sinais são claros: as relações das empresas de planos de saúde com a sociedade não podem ser abusivas.

Enquanto havia pendências no STF, empresas de planos deitaram e rolaram. O ressarcimento ao SUS tornou-se primeiro um monstrengo administrativo e, depois, um artefato contábil, que transmutou dívidas em garantias financeiras dos devedores e objeto oficial de refinanciamento fiscal. Justificativas formais das empresas pelo não atendimento — um documento básico, necessário para fins de conferência do cumprimento dos contratos — estavam sendo avaliadas quase como um luxo, um acessório. Queriam punir quem vive mais. Os idosos teriam que arcar com a culpa, expressa em pecúnia, por demandar assistência para seguir envelhecendo.

Ao julgar que essas ações e intenções são improcedentes, o STF abriu alas para a saúde. O não cumprimento das normas legais abarrotou os tribunais com ações sobre barreiras de acesso a clientes de planos. Em São Paulo, no ano passado, foram julgadas mais de 30 mil ações relativas a queixas sobre planos de saúde. A maior parte das demandas judiciais referiu-se exatamente aos aspectos que mereceram atenção do STF: negativas de coberturas, reajustes de mensalidades e reclamações sobre o aumento de mensalidades para idosos.

As experiências acumuladas dos magistrados sobre exorbitâncias de empresas de planos podem ter influenciado a votação unânime do STF. Em 2013, também por unanimidade, uma câmara de direito aplicou multa preventiva a uma operadora com a intenção preventiva de inibir práticas lesivas à saúde. A litigância referiu-se à polêmica em torno da exigência do cumprimento de prazos de carência, para atendimento de um paciente infartado que declarou ser portador de hipertensão — em oposição à situação de emergência de um caso de falência cardíaca.

Mas nem assim as recusas de cobertura diminuíram. Casos de pacientes que não tiveram acesso à assistência médico-hospitalar em razão da supremacia das razões financeiras — e em detrimento da responsabilidade pela preservação da vida — continuaram batendo nas portas da Justiça. Quando o STF deixa claro que as estratégias de lucro adicional são ilegais, espera-se que empresas e instâncias governamentais não façam corpo mole e muito menos inventem novos truques para driblar as normas.

A Câmara de Deputados e a ANS (dirigida por pessoas indicadas pelo Senado) deverão se ajustar às determinações do Poder Judiciário. Será contraditório com a decisão do STF querer aprovar no Legislativo um plano com coberturas muito restritas — como previsto no projeto de autoria de empresas de planos, relatado pelo deputado Rogério Marinho (PSDB-RN).

Também não terá cabimento seguir tratando o ressarcimento ao SUS como uma dívida, sempre deduzida e virtual, como faz a ANS. O STF mandou “água para ioiô”. Agora, a ausência de estabilidade jurídica não pode ser pretexto para o descumprimento da legislação sobre planos de saúde. Também mandou “água para iaiá”, em 2017, ao proteger o SUS dos cortes de recursos federais e ao caracterizar a necessidade de financiamento mínimo do direito à saúde e o caráter progressivo do custeio das ações e serviços públicos.

O STF não é Alá. Entretanto, estabeleceu coordenadas que permitem atravessar o “deserto” de descompromisso social. São boas perspectivas, para “queimar” a cara e chegar a um Brasil que efetive o direito à saúde.