Uma moratória que impeça a abertura de novas escolas médicas nos próximos cinco anos é uma importante demanda da Associação Médica Brasileira (AMB) e de outras entidades médicas, devido à baixíssima qualidade dos profissionais que a maioria das novas escolas está diplomando, colocando em risco a saúde da população e sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde. Inicialmente seria assinado um decreto no fim do ano passado, depois postergado para fim de janeiro deste ano, mas ainda não foi assinado.
Na abertura do evento, realizado na tarde desta quinta-feira, 8 de março, na sede da AMB, o presidente da entidade, Lincoln Ferreira, indagou o ministro da Saúde, Ricardo Barros, sobre o decreto que suspende a abertura de novas escolas médicas, que estaria pronto desde novembro de 2017. O ministro declarou recentemente em entrevista ao programa Roda Viva que a decisão de criar a moratória era do presidente da República, Michel Temer, decisão com a qual concordava. A grande pergunta é: o que falta efetivamente para que este decreto seja publicado?
Ao indagar o Ministro, Dr. Lincoln Ferreira salientou “o país claramente extrapolou sua capacidade de formar médicos com um mínimo de qualidade; temos trabalhado (o problema) junto ao Ministério da Educação, e tivemos a felicidade de ver no programa Roda Viva que é uma decisão tomada”. E ainda completou: “o decreto vai nos permitir colocar um freio de arrumação, estancar a partir de um certo ponto os problemas repetitivos que temos hoje, que irão impactar em qualquer gestão, sob a forma de exames mal solicitados, sob a forma de tratamentos mal indicados, sob a forma de sequelas, judicialização, com processos no CRM, cíveis e criminais”.
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, confirmou o que disse na entrevista ao programa Roda Viva e respondeu que: “saímos de 150 para mais de 300 cursos de medicina autorizados e, com o movimento das entidades, o presidente Temer anunciou que suspenderia por 5 anos a criação de novos cursos. Esta é a decisão do governo”. Sobre o por que ainda não saiu a portaria o Ministro se comprometeu de verificar e “encaminhar para que isto seja consolidado”, e ainda complementou que “não foram somente novas escolas, tem escolas com 300 vagas, formando 300 médicos por ano”.
Para a Associação Médica Brasileira (AMB), quando a medida entrar em vigor, será uma das mais importantes conquistas da população brasileira e para a saúde do País.
O que deve mudar com o decreto?
Com a mudança, o País vai ganhar tempo para que se defina o que fazer do ensino médico no Brasil, criando-se a oportunidade para a implantação de critérios eficientes e eficazes a fim de que se mantenham instituições com competência educacional.
Posição da AMB
Para o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Dr Lincoln Lopes Ferreira, “a moratória não resolve tudo, mas ajuda muito a estancar o problema. A população precisa ter certeza de que, se um médico está formado e com um diploma, ele tem totais condições de atendê-la, independentemente de onde tenha estudado. Esse controle de qualidade é uma demanda de longa data da Associação Médica Brasileira, inclusive para médicos formados antes da abertura indiscriminada de novas escolas”.
“A verdade nua e crua é que o ensino virou um balcão de negócios com o aval dos governos que administraram o Brasil nos últimos 20 anos, e a qualidade ficou em segundo lugar. Sessenta por cento são escolas particulares e cobram entre R$ 5 mil e R$ 15 mil mensais por aluno”, explica o presidente da AMB.
A AMB acredita que medicina de qualidade só se faz com médicos qualificados. Segundo a associação, não há mais necessidade de qualquer curso de medicina novo no Brasil. O Brasil precisa é de médicos com formação de qualidade.
“Não há solução mágica para os problemas da saúde no Brasil. Financiar com recursos do Estado brasileiro uma indústria de impressão e de distribuição de diplomas de médicos não muda a realidade precária da saúde brasileira. Da mesma forma como a vinda dos profissionais cubanos não melhorou substancialmente nenhum índice importante de mensuração”, acrescenta o presidente da AMB.
A AMB também entende que, apesar de o decreto ser extremamente importante, alguns pontos ainda precisam ser conversados com a classe médica. Como, por exemplo, a localização das escolas e as estruturas oferecidas aos alunos. É preciso entender melhor onde estão e como funcionam as atuais escolas. Por isso, a AMB alerta que só a assinatura do decreto não será suficiente para garantir a preparação de bons médicos.
É preciso cancelar os editais lançados durante o governo anterior e que ainda estão em andamento. Eles foram concebidos com os mesmos vícios que causaram os problemas que temos visto em diversas escolas inauguradas recentemente.
Excesso de cursos de medicina
No Brasil, existem atualmente mais de 300 escolas de medicina. Entre 2000 e 2015, foram criadas 142 escolas médicas. Mais de cem escolas foram liberadas para atuar a partir de 2013. São, ao todo, 78 escolas federais, 35 estaduais, 16 municipais, duas públicas e 172 particulares. Um número surreal, se comparado com países como a China, onde existem 150 faculdades para 1,3 bilhão de pessoas, ou quando olhamos para os Estados Unidos, que tem 131 cursos para 300 milhões de habitantes e as escolas mais respeitadas do mundo.
Só para se ter uma ideia, em 15 anos foram criados três vezes mais cursos de medicina que nos últimos 200 anos de história do nosso país. Isso desde que D. João VI assinou, em 1808, o documento que permitiu criar a primeira faculdade de medicina do Brasil, a Escola de Cirurgia da Bahia (atualmente, a Fameb da UFBA).
Com a expansão das escolas de medicina, em poucos anos estarão se formando cerca de 30 mil médicos por ano, o que dará uma relação de 14 médicos por 100 mil habitantes, quase o dobro da relação nos Estados Unidos.
É preciso formar bons médicos
Os resultados dos exames realizados pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), nos últimos 13 anos, deixam claro o problema da má formação dos médicos nas atuais escolas de medicina. Apesar de a prova abranger temas gerais de grau intermediário de dificuldade, o desempenho dos formandos tem sido pífio. Em 12 das 13 edições do exame, mais da metade dos médicos formados acertam menos de 50% das questões. Um verdadeiro desrespeito à saúde da população e um risco para a imagem da classe médica como um todo. Afinal, não há como se distinguir nos hospitais quais são os médicos bem formados ou não.
Dos 2.636 médicos que participaram da prova de 2017, mais de 35% acertaram menos de 60% das 120 questões da prova, porcentagem considerada mínima para a aprovação. O quadro fica pior quando se descobre que 88% dos recém-formados não souberam interpretar o resultado de uma mamografia, 78% erraram o diagnóstico de diabetes, 60% demonstraram pouco conhecimento sobre doenças parasitárias e 40% não souberam elaborar a suspeita de um caso de apendicite aguda.
O que se vê nas escolas de medicina são todos os tipos de problemas, dos mais sérios e variados: não existem professores com formação acadêmica em quantidade suficiente nas escolas, que muitas vezes funcionam em cidades onde nem há médicos para atender a população; os laboratórios de boa parte das faculdades são inadequados para o ensino das disciplinas básicas; não há instalações adequadas e a maior parte das faculdades autorizadas pelo MEC não conta com hospitais-escolas, fundamentais na formação prática e no internato dos alunos.
O internato é diferente da residência, que o profissional faz depois de formado. Os últimos dois anos do curso de medicina são dedicados ao estágio, chamado de internato, em que o aluno vai aprender na prática. O MEC exige que, para cada vaga do curso de medicina, deve haver um mínimo de cinco leitos do SUS, ou conveniados, para o internato. Mas a maioria das escolas nem convênio com hospitais tem. As salas de aula têm laboratórios e bonecos de plástico, mas faltam professores e espaço para a formação prática em enfermarias.
O presidente da AMB explica que aumentar o número de médicos no Brasil, pura e simplesmente, não resolve o problema da saúde atual e cria outros, como a sobrecarga do sistema devido à atuação de médicos despreparados e inseguros, que pedem exames desnecessários, além de internarem e medicarem de forma equivocada, drenando de forma cruel os parcos recursos que a saúde pública possui. Ou seja, formar bons médicos custa caro. Mas formar maus médicos custa mais caro ainda.
A alegação do governo federal era de que a abertura se fazia necessária porque faltam médicos no Brasil. Atualmente, o Brasil tem 1,8 médico por mil habitantes. A média das Américas, incluindo Estados Unidos, é de 2,2. E a da Europa é 3,3. O problema do nosso país é que 55% deles trabalham no Sudeste, o triplo da Região Norte. Nas 27 capitais, estão concentrados 55% dos profissionais. Os demais ficam responsáveis por 5.543 municípios. A falta de médicos será resolvida com os cursos de medicina que já existem. São mais de 300 cursos atualmente em funcionamento ou autorizados. Já os desafios do setor no Brasil são enormes, muito mais ligados ao pouco financiamento, à péssima gestão e à corrupção do que à quantidade de médicos existentes no País. Não se pode negar que há dificuldade para atrair e manter médicos em localidades longínquas, mas a solução para isso tem de ser pensada a partir de uma avaliação séria das causas disso, e não de pressupostos simplistas como o de que faltam médicos no País.
Mais avaliações
Avaliar os cursos de medicina e seus egressos ainda é um tabu no Brasil. As desculpas são muitas, mas nenhuma delas leva em conta o direito do cidadão, que confia que um médico é alguém que entende de medicina e é capaz de diagnosticar e solucionar seus problemas de saúde. O paciente é o elo mais fraco dessa cadeia. É preciso pensar que todo o sistema existe para que ele possa ser atendido de forma eficiente e com qualidade. Tudo que for feito e prejudicar este quadro ou não ajudar a melhorar esta situação resultará em dinheiro, tempo e vidas jogados fora.
O ideal seria que os diplomados fizessem um exame de proficiência nacional obrigatório por lei. Os reprovados voltariam para cursos de reforço nas faculdades em que estudaram. E, no melhor dos mundos, em pouco tempo, escolas com índices altos de reprovação seriam fechadas pelo MEC. Isso ajudaria a proteger a sociedade da incompetência de médicos malformados.