fonte: Folha de SP
por Daniel Martins de Barros
Vamos falar sobre as controversas práticas integrativas oferecidas pelo SUS. Com as novas modalidades incluídas essa semana, dentre as quais a aplicação de “argila misturada com água sobre ferimentos” (geoterapia) e a imposição de mãos para promover “troca de energia com os pacientes (…) e assim curar mazelas”.
Quando estava pensando como abordar o tema lembrei-me de um episódio de Star Trek, a Nova Geração, que assisti em minha adolescência. Ele se chamava Simbiose e contava a história de dois planetas que viviam uma estranha relação, digamos, simbiótica. Um era assolado por uma praga mas seu remédio só era produzido no outro planeta. Como todos os habitantes precisavam do medicamento, o planeta produtor vivia exclusivamente de sua produção, recebendo em troca tudo o que precisava – sua única indústria era a do medicamento. No entanto a médica da Enterprise descobre que na verdade a praga fora erradicada há muito tempo, e que o remédio causava dependência química. Os sintomas que os habitantes apresentavam na ausência da medicação eram, na verdade, síndrome de abstinência. Infelizmente o capitão Jean-Luc Picard não pode interferir naquela situação, já que a a Primeira Diretriz da Frota Estelar diz que “É proibido a todas as naves e membros da Frota Estelar interferir com o desenvolvimento normal de uma cultura ou sociedade”. Mais tarde, porém, Picard encontra nessa mesma regra a solução. As naves cargueiro que fazem o escambo entre os planetas precisavam de reparos que nenhum dos habitantes sabia realizar; o capitão invoca então a Primeira Diretriz para não consertá-las, condenando essa simbiose à extinção.
Por que essa história toda? Porque nem sempre o que faz as pessoas se sentirem melhor é bom para elas. Que a medicina alternativa funciona, não há dúvida. Só depende de como definimos “funciona”. Se as pessoas não lhes atribuíssem algum valor elas já teriam sido varridas do mapa dada a ululante ausência de eficácia clínica corroborada por evidências científicas. Quem recorre à apiterapia (tratamento com produtos das abelhas) ou à homeopatia não quer saber se os cientistas validaram aquelas práticas. Ao contrário, é mais frequente do que não as pessoas reconhecerem a ausência de base científica para tais métodos. Elas normalmente estão em busca de algo que, sem substituir a medicina científica, lhes dê algum significado e conforto no momento da doença. Tanto que numa grande pesquisa americana, os fatores que mais levavam alguém a buscar terapias complementares era a presença de ansiedade, dores crônicas, em pessoas bem educadas mas com saúde ruim.
Existem dois grandes problemas aqui. O primeiro tem a ver com os limitados recursos que qualquer governo, em qualquer lugar do mundo, tem para investir em saúde. Numa realidade em que é preciso fazer escolhas sobre o que oferecer à população, já que nunca haverá dinheiro para disponibilizar tudo para todos (ao contrário do que sonha o SUS), no momento em que se paga pela fabricação de essências para que os pacientes as cheirem e sintam-se melhor (aromaterapia), está-se necessariamente deixando de pagar pela fabricação de AAS ou insulina para infartados e diabéticos adoecerem e morrerem menos. É uma questão ética.
O segundo é que as pessoas se sentirem melhor não é um bom parâmetro para de eficácia. Um estudo que demonstrou cabalmente isso foi feito com asmáticos, comparando a bombinha tradicional com um placebo e falsa acupuntura. Os voluntários relataram melhora na sensação de falta de ar perto de 50% com qualquer um dos tratamentos. Mas apenas a bombinha melhorava de fato o fluxo de ar para os pulmões, reduzindo o risco de morte. Eu ia dizer que se tratava de um problema técnico, mas no fundo é também uma questão ética, como fica evidente. Tratamentos sem eficácia comprovada podem levar as pessoas a se sentirem melhor sem tratá-las de fato. Isso não pode ser considerado ético.
Por tudo isso não vou dizer que as práticas complementares não são úteis, eficazes ou custo-efetivas. Nem preciso chegar a fazer essas análises se sua oferta não passa sequer no crivo mais básico da ética.