fonte: Folha de SP

“Do ponto de vista de uma cirurgiã e uma das poucas reitoras de escolas de medicina, parece que a sociedade dos EUA está à beira de uma mudança na abordagem do assédio sexual”, escreveu a médica Julie A. Freischlag, da Faculdade de Medicina de Wake Forest, no estado americano de Carolina do Norte.

O título do artigo dela, publicado neste mês na revista Jama (Journal of American Medical Association), indica o timing da discussão: “Uma consequência do movimento #metoo” (“eu também”).

A onda de denúncias de assédios começou no ano passado na área de entretenimento, mas aos poucos deixou de se restringir a ela. Agora, diz a médica, é hora de mulheres (e homens) serem corajosos e trazerem a discussão também para a medicina.

“Políticas [contra discriminação e assédio] nem sempre são colocadas em prática e incidentes nem sempre são relatados por medo de retaliação”, escreve ela.

Outro artigo publicado na revista médica Jama junto com o texto de Freischlag traz uma pesquisa feita com 14.405 formandos em medicina no ano passado nos EUA. Desses, 33% relataram terem ouvido comentários sexistas, racistas ou com outras ofensas ou recebido notas baixas, recusas a treinamento ou a prêmios por causa de seu sexo, identidade de gênero, orientação sexual, raça ou etnia.

“O que aconteceu nas escolas de medicina desde outubro de 2017 e o movimento #metoo?”, pergunta Karen Antman, reitora da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston e autora do texto.

Um questionário sobre o assunto foi enviado para os reitores de 140 escolas de medicina nos EUA em fevereiro deste ano. Vinte e um responderam, e apenas seis viram um aumento no número de reclamações sobre assédio sexual desde outubro de 2016.

Curiosamente, três desses seis receberam novas alegações graves de ex-alunas –uma delas, por exemplo, disse que foi aconselhada pela administração da escola a não prestar queixa na época para não prejudicar suas chances de entrar na residência.

Dos bastidores de Hollywood o tema foi para as telas. Novas séries e episódios de temática médica têm retratado o problema como é o caso de “The Good Doctor”. Em episódio que foi ao ar em dezembro, a médica Claire Brown (Antonia Thomas) é assediada pelo colega Matt Coyle (Eric Winter).

BRASIL

O tema abuso na faculdade de medicina não é novo, mas hoje mobiliza mais as médicas –há desde grupos de WhatsApp para trocas de informações e relatos a coletivos dentro das escolas.

“Nos últimos quatro anos, cresceram muitos os coletivos feministas e também em defesa de LGBT, negros e indígenas”, diz Prislaine Krodi, psicóloga do USP Mulheres.

Outros são o Coletivo de Mulheres Medicina Unicamp (MUDA), Coletivo Feminista Geni da Faculdade de Medicina da USP, Coletivo Feminista Estrelas do Sul, da Faculdade de Medicina de Catanduva (SP) e o Coletivo de Mulheres Medicina Estácio de Sá (Rio).
O USP Mulheres foi criado quase concomitantemente à Rede Não Cala USP, na qual cerca de 200 professoras e pesquisadoras começaram a debater o fim da violência sexual e de gênero na universidade após abusos relatados por alunas da Faculdade de Medicina da USP em 2014.

Na época, o Ministério Público do Estado de São Paulo apurou as denúncias de violência ocorridas dentro da faculdade de medicina e a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as queixas de estupros e outras violações em unidades de ensino paulistas.

Uma das recomendações do Ministério Público feita à USP era de manter em funcionamento grupos de trabalho e comissões de direitos humanos. Já a CPI solicitou que fossem publicadas estatísticas de vítimas de trotes e outras violências praticadas nas faculdades e universidades do Estado de São Paulo. No caso dos estupros, um aluno foi réu e absolvido em 2017.

Segundo pesquisa com 317 estudantes da graduação de medicina da USP, coordenada em 2013 pela professora Maria Fernanda Tourinho Peres, 92,3% afirmam terem sofrido algum tipo de assédio ou discriminação.

Maria Cristina Pereira Lima, vice-diretora da Faculdade de Medicina da Unesp e autora de estudos sobre trotes violentos, afirma que a universidade é um retrato da sociedade que estimula mais a competição do que a colaboração. “De qualquer maneira, as pessoas hoje estão mais prontas para denunciar a violência.”

DEPOIMENTO

Leia depoimento da cirurgiã de São Paulo, Samara, 34 (nome fictício), em que ela relata os assédios sofridos durante a residência.

“No hospital onde eu queria fazer residência, o chefe do pronto-socorro me disse que eles não gostavam de mulher e que eu teria que provar que era capaz de estar ali todos os dias. Eu era recém-formada, tinha 24 anos e acabado de fazer a prova para uma das 12 vagas de residência médica em cirurgia geral no hospital mais concorrido da cidade de São Paulo.

Reagi sorrindo ao comentário. Achei que ele estivesse brincando, mas, após passar na prova, percebi que as exceções eram os professores que nos tratavam bem. Vivenciei dois anos de assédios morais contra as alunas.

Na medicina, há muito assédio moral e comentários sexistas, principalmente em áreas de predomínio masculino como a cirurgia, a ortopedia e a anestesia. Quando cursei residência médica, a turma estava repleta de alunas e todas éramos dedicadas. Mesmo assim, os professores falavam que não gostavam de nós porque ‘mulheres fazem muita fofoca’.

Toda vez que entrava em cirurgia, ouvia a mesma piada. Os professores perguntavam se eu queria o pijama cirúrgico rosa (a cor da indumentária é verde). E, quando havia uma cirurgia mais complexa, davam preferência aos homens. Se não tivesse um número suficiente para todos, nós ficávamos sem participar. Ao mesmo tempo, por ser brava, falavam que eu era mais ‘macho’ que muito cirurgião. Valorizavam.

Era pior para as alunas, mas todos os residentes eram assediados diariamente. No primeiro ano, não podíamos almoçar. Se alguém nos visse almoçando, éramos impedidos de operar no dia em questão. A solidariedade vinha dos enfermeiros que nos ofereciam escondido café e pão.

Também não podíamos frequentar a lanchonete nem utilizar o elevador, só as escadas. Apesar de haver camas para o descanso, os residentes eram impedidos de usá-las. Dormíamos durante os plantões de até 36 horas em uma sala de materiais. Deitávamos sobre um armário, uma espécie de balcão, forrado com um lençol. Além disso, éramos esculachados na frente dos pacientes ao retificar algum detalhe dito pelos chefes ou residentes mais velhos. Alguns residentes choravam e os pacientes é que nos consolavam.

Hoje penso como me submeti a tudo aquilo. Mas era uma cultura enraizada, achávamos que ser residente era assim e que não havia opção senão aceitar, mesmo sabendo que estava errado.

Mas as coisas estão mudando. Há mais informação, os alunos não aceitam mais certas situações e os médicos têm tomado consciência de que tudo isso está errado.”