fonte: O Globo

Tratar uma criança com malformação no coração custa muito. Exige mais profissionais e hospitais especializados do que o Brasil dispõe: em seis estados, não se realiza a cirurgia necessária para a correção do problema. O desequilíbrio entre demanda e oferta aumenta o já farto peso sobre os ombros de profissionais que trabalham diariamente no limiar entre a vida e a morte de recém-nascidos. No Rio de Janeiro, dois dos cinco hospitais habilitados não estão operando por falta de recursos. O GLOBO acompanhou 24 horas de plantão em um dos hospitais que operam os corações de crianças de todo o estado.

1h30m

O relógio batia por volta de uma e meia da manhã na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para crianças cardíacas da Perinatal da Barra da Tijuca, na Zona Oeste. A técnica em enfermagem Tatiana Moreira balançava de um lado para o outro com uma criança no colo e as pálpebras rebaixadas pelo cansaço. “Dizem que isso aqui é um lugar de morte, mas eu vejo como um lugar de vida, nós salvamos vidas aqui”, diz Tatiana, lutando para não ceder às lágrimas com mais uma partida: a menina tinha alta programada para o dia seguinte.

4h15m

A madrugada não é exatamente tranquila, no entanto. Há 12 pequenos quartos envidraçados na UTI, e no centro de cada um deles se encontra um pequeno berço e uma profusão de equipamentos. Naquela noite, dez quartos estavam ocupados, dois deles com bebês em estado grave. Apitos descontrolados irrompem de um desses quartos por volta das quatro da manhã. O pequeno corpo, monitorado por uma profusão de fios e tubos, mal se move. A menina de um mês de vida está quase tão branca quanto os lençóis que a envolvem. Em uma das cinco telas ao lado do berço de acrílico é possível ler que a taxa de oxigenação de seu sangue está abaixo dos parâmetros estabelecidos. Não seria a única vez que isso aconteceria nas 24 horas do plantão.

Existem mais de 120 variações de malformações cardíacas possíveis, e todas elas têm um único e pernicioso efeito colateral em comum: comprometem a oxigenação do sangue do recém-nascido. Com alterações no percurso traçado dentro do pequeno corpo, a corrente sanguínea não consegue carregar oxigênio o suficiente, o que pode comprometer todo o organismo. Sem oxigênio o suficiente, os outros órgãos vão entrando em colapso, o que pode levar à morte em anos ou dias, dependendo do tipo de malformação que o pequeno coração apresente.

O problema não é sem solução, nem imprevisível. A malformação pode ser diagnosticada com o bebê ainda na barriga da mãe, e em 20% dos casos o próprio corpo se ajusta, com o desenvolvimento da criança. Nos outros 80% dos pacientes, procedimentos cirúrgicos podem corrigir a estrutura do coração.

A grande questão, no Brasil, é a falta de acesso ao diagnóstico e ao tratamento. Estima-se que a cada ano 29 mil crianças brasileiras nasçam com alterações na estrutura cardíaca, mas os registros oficiais de atendimento não chegam a um terço desse número, que pode ser ainda maior, já que muitas mortes de recém-nascidos são registradas como “mal súbito” por falta de um diagnóstico mais conclusivo.

5h30m

De volta ao cômodo onde os aparelhos apitavam, percebe-se que ali houve um esforço familiar em criar a atmosfera de um quarto de bebê: bichos de pelúcia descansam sobre a poltrona e, na beira da janela, é possível ver as iniciais da menina em madeira pintada de rosa. Durante a noite, seus pais vão descansar em um apartamento na vizinhança que amigos ajudaram a alugar, mas ao amanhecer eles chegam para passar o dia inteiro no hospital. Vinda de um hospital público, além de problemas no coração, a menina de um mês tem complicações nos rins e uma infecção que deve ser tratada antes de entrar na sala de cirurgia. Seus pais conseguiram cortar a fila por um leito com uma liminar da Justiça.

No último ano, com a redução na oferta pública de cirurgias cardíacas pediátricas no estado, aumentou a procura no Plantão Judiciário Noturno por atendimentos de crianças cardiopatas. Esse aumento e uma denúncia do Conselho Regional de Medicina do Rio (CREMERJ) fizeram as defensorias públicas da União e do estado analisarem a situação. As duas instituições entraram com uma ação civil pública, aberta em março.

“As unidades de saúde que prestam o serviço de cirurgia cardiovascular pediátrica no SUS no território do estado do Rio de Janeiro foram abandonadas e desaparelhadas pelos entes federativos”, criticam as defensorias, no documento.

Procurada, a Secretaria de Estado de Saúde informou que “retomou a realização de cirurgias no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC) e no serviço contratualizado na Casa de Saúde de Laranjeiras”. “A espera por uma cirurgia cardíaca já chegou a mil pacientes, e atualmente há 51 crianças aguardando pelo procedimento”, respondeu a secretaria, sem explicar a diferença do tamanho da fila segundo seus cálculos e segundo os cálculos do CREMERJ e das defensorias, que consultaram as chefias dos três hospitais operantes.

6h

O sol nasce, e um novo grupo de profissionais chega para render o plantão. Algumas enfermeiras chegam e ficam visivelmente abaladas ao descobrir que, durante os dois dias de descanso, um menino de poucos dias de vida morreu. “Menina, eu chorei tanto esse domingo por isso”, uma das enfermeiras comenta, ao dar a notícia para as colegas.

A primeira semana é o momento mais arriscado para um bebê. No Brasil, 41% das mortes registradas até os 5 anos de idade acontecem antes de a criança completar sete dias. Nesse período, a prematuridade e as malformações são os dois maiores algozes, sendo as cardíacas as mais agressivas.

Durante o plantão acompanhado por O GLOBO, seis das dez crianças internadas eram do Sistema Estadual de Saúde. A Perinatal tem um contrato com o governo do Rio para fazer esse tipo de atendimento, mas o pagamento está atrasado. Na ação civil, as defensorias acusam a clínica de diminuir o fluxo de atendimentos em meses que o governo demora a pagar pelo serviço. A Perinatal enviou para O GLOBO os números de cirurgias realizadas e, de fato, há uma redução entre setembro e novembro de 2017, quando foram feitas 13 operações por mês. No entanto, o índice voltou a subir neste ano, e a média atual é de 20 cirurgias por mês. Se esse índice for mantido, serão 240 ao ano.

O Ministério da Saúde estabelece um parâmetro mínimo de 120 cirurgias por ano para serviços habilitados exclusivamente em pediatria, como é o caso da Perinatal. A pasta reconhece que essa situação deficitária não se restringe ao Rio: 49% dos hospitais públicos habilitados não atingem o mínimo de cirurgias cardíacas pediátricas congênitas exigido. Para corrigir essa situação, foi anunciado em 2017 um aumento de 75% no orçamento dos atendimentos a cardiopatias pediátricas. O objetivo é passar de 9,2 mil cirurgias ao ano para cerca de 12 mil, em todo o país, o que seria suficiente para atender aos casos urgentes que surgem a cada ano. No entanto, há uma fila de crianças esperando que não é considerada.

10h

Começa a reunião sobre o desenvolvimento dos pacientes, liderada pela chefe da equipe médica, Sandra Pereira. Ela conta que leva aproximadamente dez anos para formar um médico especializado em cirurgia cardíaca pediátrica – e esse é o tempo contado após receber o diploma de medicina, ou seja, pode levar até 20 anos. Conta também que, no Rio, só existem três cirurgiões especializados.

Sandra é uma mulher séria, de fala pausada e cabelos longos. Enquanto anda pelo corredor da UTI, pressiona os lábios e aguça o olhar sobre cada leito. Na reunião, a responsável pela parte clínica, Maria Julia Barbosa, que coordena o tratamento dado aos pacientes antes e depois das operações, debate o melhor caminho a ser tomado com cada criança para que esteja em condições de aguentar a operação; muitas chegam ali com infecções e outros tipos de complicações que impedem a intervenção imediata.

12h

Depois de saber como cada paciente se desenvolveu durante a noite, Sandra confere os próximos bebês a serem recebidos e senta-se com o cirurgião-chefe, Jefferson Magalhães, para estabelecer a estratégia adotada em cada uma das próximas cirurgias e quais equipamentos serão necessários. Cada operação é única, e cada coração exige uma estratégia específica. Alguns métodos, conta Sandra, foram desenvolvidos por profissionais que se encontram ali, e só são executados por eles.

– A gente perde noites em claro pensando em como vai resolver, porque existem casos que são muito complexos, não é uma ciência exata.

13h30m

Dentro da sala de cirurgia, durante toda a tarde, quem manda é o doutor Jefferson. Um pano cobre o pequeno corpo do bebê sobre a mesa, com uma abertura que permite ver apenas a área operada. Tubos puxam o sangue do pequeno corpo de um bebê para dentro de uma máquina que o bombeia de volta ao organismo, fazendo o trabalho do coração enquanto o órgão é operado. Os cirurgiões usam óculos com lentes de aumento especiais, para a precisão total em cada movimento.

Ao fim da tarde, a menina de um ano, que passou por sua primeira cirurgia, já estava de volta à UTI, e as enfermeiras abaixavam uma das laterais do berço para que ela se acalmasse sentindo o calor do corpo da mãe, dobrada por sobre a maca. Aos poucos, a sedação será diminuída, e logo ela poderá voltar para casa. Como levou mais tempo do que o normal para ser diagnosticada e operada – a maioria das crianças ali têm menos de um ano – sua cardiopatia gerou alguns efeitos colaterais: a baixa oxigenação do cérebro comprometeu a coordenação motora fina em todo o lado esquerdo do corpo.

16h

Sandra explica que é comum muitas crianças cardiopatas apresentarem outros problemas de saúde e que, dependendo da malformação apresentada, em alguns países nórdicos se considera inclusive a interrupção da gravidez.

– Pensa-se no custo-benefício e na qualidade de vida que essa criança e sua família teriam – explica a médica.

Gestão de saúde envolve otimização investimentos; financeiros, de tempo e de esforço. Há complicações facilmente resolvidas, outros quadros são tão fortes que a criança se limitará a passar a vida na cama, outras necessitarão de tratamentos hepáticos para sempre. No Brasil, conta a médica, a cultura entre pais e profissionais é a de sempre tentar submeter à cirurgia.

18h30m

Após a cirurgia, Jefferson desce para o corredor da UTI cardíaca para ver os pacientes. É convocado às pressas para entrar em um dos cômodos: a mesma criança que havia apresentado queda de oxigenação durante a noite estava passando por um procedimento em que aplicavam um acesso profundo para os remédios serem aplicados diretamente. Jefferson abre a mochila, troca os óculos estreitos de leitura pelos especiais de operação e pede que alguém lhe traga um capote – uma espécie de jaleco de uso obrigatório dentro dos 12 cômodos da UTI. Ele arremessa as mangas, coloca a roupa especial e adentra o quarto, onde fica por mais uma hora e meia.

20h

Pouco depois de sua saída, alguns pais começam a chegar. Como algumas crianças chegam a ficar internadas por meses, muitos de seus responsáveis são requisitados a voltar ao trabalho, regressando à UTI à noite.

Há crianças que permanecem sozinhas a maior parte do tempo, suas famílias são de outras cidades. Há crianças que permanecem acompanhadas o tempo inteiro por mães que se sentem culpadas até mesmo por sair para tomar um banho.

A maioria das responsáveis presentes é de mulheres. Elas permanecem em silêncio a maior parte do tempo, com os olhares aflitos sobre seus bebês. Algumas não parecem ter chegado à casa dos 20 anos. Apenas duas estão acompanhadas por homens.

23h30m

Em um dos cômodos, o pai de uma das crianças dá um beijo da testa de sua mulher. Ela passou o dia inteiro de pé ao lado do berço da filha, com as mãos juntas, postadas como em oração – a maioria das mães da UTI é frequentemente vista nessa posição. Quando o marido chega, ela ainda fica mais um tempo de pé, e depois recolhe-se na poltrona encaixada entre o berço e a parede, dormindo sob os constantes apitos dos aparelhos ligados ao corpo de sua filha, que está na fila para operação. Tratar uma criança com malformação no coração custa muito. O mais caro dos investimentos é o emocional.